Colunas, Opinião

A República dos Mentirosos

As coisas já começaram mal.  Sobre a própria descoberta do território, onde ocorreria mais tarde a República, paira uma dúvida.  A história oficial diz que as coisas teriam sido casuais, que teria havido um erro de rota e, de repente, surgira, à frente das caravelas, aquele vasto território ignoto.  Essa versão, claro, conferiria enorme dose de realidade ao território (tipo, “no meio do caminho tinha um continente”, como cantado mais tarde), feito uma verdade que se impusesse a todos (especialmente aos espanhóis), e que conferiria fama ao navegador desastrado (um certo Cabral, cuja descendência tardia nem sempre honraria).

Hoje, porém, sabe-se (Cuidado!  Verbos como este, “saber”, embora muito usados, não geram a menor confiança na República.) que tudo não passou de uma farsa, que já se sabia milimetricamente da terra brasilis, e que apenas se conferiu certa ingenuidade casual aos fatos pra evitar eventuais futuras responsabilizações, e, também, para enganar os bobos (o que se tornaria uma obsessão).

Isso são fatos distantes, é verdade, mas expressam como a brincadeira começou cedo, tipo um pecado original.

A vida prosseguiu e, entre mentirosos e bobos alegres (papéis que se alternam, quando não se acumulam), a República foi se gestando, sempre com a conotação (ou seria denotação?) do improvável.  Quer dizer, o improvável acontecia, mas nunca se conseguia provar (porque, inclusive, provavelmente – ou improvavelmente – fosse falso).  Vieram episódios menores.  Num deles, o próprio rei veio parar aqui.  Esperto!  Fugiu prum lugar onde ninguém saberia a verdade e onde nem o Napoleão (que encarou o inverno russo) se arriscaria, temeroso de se converter numa piada.

Naquele tempo a República ainda era uma colônia  (Sic.  Contradições são muito apreciadas na estética verbal da República.)  E seria transformada em reino, numa jogada duvidosa.

Então veio a independência.  Sem dúvida, uma das grandes mentiras que serve até hoje de pilar da República.  Foi uma independência dependente, à custa de pagamentos, acordos vis, entrega dos dedos com anéis e tudo, e com a certeza de que a espoliação continuaria.  Já se formava a classe dos mentirosos-mor (que não exclui a dos mentirosos-minor, reles fraudadores de seguro-desemprego, falsos encostados do INSS, falsificadores de atestados, furadores de fila, sonegadorezinhos de bagatela, passageiros de excursões a Foz do Iguaçu,  etc, que sonham em ter, um dia, as oportunidades dos mentirosos-mor).

Outros episódios ocorreram, e a mentira cravou suas garras e seus caninos definitiva e profundamente na carne republicana, e o veneno se imiscuiu irrecuperável e generosamente naquele sangue (embora, aliás, deva-se registrar que ainda se tratava de uma monarquia).  Aqui no sul, por exemplo, a gloriosa Revolução Farroupilha (precursora da Guerra da Secessão, um pouco mais ao norte), ficou a meio caminho, para deixar claro que nada se esclarece nem se completa.  (O Antônio de Souza Neto teve que se mandar pro Uruguai com seus libertos.)

Logo depois viria um dos eventos que elevaria para sempre e alto o nome da República dos Mentirosos.  A libertação dos escravos.

(Note-se que o sistema de governo e o sistema econômico da República são extremamente complexos.  São sistemas de freios e contrapesos em que, aleatoriamente, o freio tanto breca como acelera, e o contrapeso tanto pesa quanto alivia, e vice-versa, produzindo frequentemente graves acidentes de percurso.  Esse sistema faz com que determinadas medidas ou políticas tenham exatamente o resultado oposto ao que pretendiam (embora alguns suspeitem que os objetivos pretendidos fossem falsos).  Foi o que aconteceu com os escravos, hoje livres nos guetos de traficantes, nas ruas sem esgoto, nas escolas sem professores, nos empregos miseráveis ou nos cárceres amontoados.)

Mas finalmente veio a República.  E já o Deodoro, vendo que a coisa não era bem assim, teve que sair de cena.  Porém, sendo uma república, e democrática (!), havia eleições.  Essas, claro, eram fraudadas.  Tanto que nós aqui no sul (sempre nós!) tivemos que fazer mais uma revolução pra dar um basta àqueles exageros.  E pusemos limites: “Só vinte e cinco anos de governo.  Nem um ano mais.”  Depois resolvemos expandir as revoluções e fizemos algumas mais pro norte, até que o negócio se vulgarizou e começaram a dizer que nem era revolução, que era golpe de estado mesmo.

O certo, porém, é que a República teve seus expoentes.  Um deles, muito citado por sua oração em nome da honra e da retidão de caráter, é suspeito de, tendo se associado a um empresário, ter “encilhado” o país e o cavalgado galhardamente como Ministro da Fazenda.  Ocorre que (como o escorpião que, tendo pego uma carona, ferrou o sapo em meio à travessia do rio) a natureza ludibriante da República é muito contagiosa.

Bem, mas essa história já tá muito longa.  Vamos pular pros dias atuais e mentir um pouco sobre o auge, o clímax, o orgasmo (inacabado e inacabável) da mentira e sua república.

Pois nesse último quadrante da sua existência a RdM passou a sofrer estremecimentos gravíssimos a ponto de suas placas tectônicas ameaçarem a puxar o tapete (há evidentemente o temor de que apareça o que está embaixo do tapete).  Tanto correm graves riscos a República quanto a própria Mentira.  É que a verdade (!!!) sorrateiramente conquistou alguma expressão e ameaça vingar-se por tantos anos de ostracismo.  Mas, como não fugimos de nós mesmos, ela vem na boca de rematados mentirosos, que se convertem em honrados heróis sob a égide de delatores.  Abnegados, dedicaram sua vida ao crime.  Arriscando a pele, infiltraram-se em organizações que cresceram apascentadas pelo maná do erário, encheram as burras de dinheiro (e nada mais enfadonho, mais tedioso, mais desagradável do que a riqueza excessiva) e, de repente, como que tocados pela pomba branca, como se a garrafa do jogo da verdade apontasse pra eles, puseram-se a vomitar escabrosos relatos que vexam mesmo os maiores mentirosos da República.  Esses oráculos, esses delatores não são menos do que mártires da verdade, agora obrigados ao desterro (em Miami ou em Paris).

Mas os bons exemplos grassam.  Comovido pela magnanimidade desses convertidos que, renegando sua antiga fé, traíram seus parceiros criminosos, um elevado prócer da República resolveu também trair seus antigos aliados, conspirar contra eles, e (vejam só!), súbita e imprevisivelmente, tornou-se presidente.  Depois, perguntado sobre a proeza, atribuiria a deus a conspiração.

Teólogos afoitos, “inabituados” a essas tramoias, chegaram a indagar: “Seria nosso deus um traidor?”  Outros, menos ingênuos, formularam a questão diferentemente: “Haveria falsos deuses dizendo verdades ao crédulo povo da República?”

Mas a verdade (Cuidado!  Palavra perigosa!  Não creia!) é que a vida prossegue, incólume a tais arroubos.  Milagres fabulosos são vulgares.  Milhões em joias surgem no patrimônio de uma dama; polpudas quantias são depositadas no exterior em nome de desavisados próceres da república; malas de dinheiro renegadas trafegam em mãos de terceiros (sempre terceiros; nem sequer segundos); triplex, sítios (em Atibaia, normalmente), pedalinhos, mudam de titularidade ao sabor dos ventos (são os chamados “capitais voláteis”), institutos criam-se e engordam promovendo palestras espíritas (não menos impalpáveis do que os capitais), visitas íntimas que ocorrem em palácios na calada da noite são gravadas despudoradamente, et alii.

Um caso à parte na República é o sistema jurídico.  Suas requintadas regras são límpidas como a água.  Distinguem, regulando com perfeição, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.  Assim, por exemplo, a regra que consagra um gato angorá é a mesma que lança à fogueira um sapo barbudo, já que felinos e batráquios são coisas muito diferentes.  (Além disso, se comenta à boca pequena que dito batráquio teria sido beijado algumas vezes, mas nunca se converteu em príncipe, e que o felino, a esta altura, está mais pra rato, já que o bicho tá pegando.)

Mas isso é pano pra muita manga, e o nosso tempo já esgotou.

Como dizem os castelhanos, “La nave va!” (e passa longe da verdade, enquanto Ulisses se regozija num surubão co’as sereias).

Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.


Warning: Use of undefined constant comment - assumed 'comment' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/storage/8/dc/90/ajufergs/public_html/blog/wp-content/themes/rowling/comments.php on line 29
1
Warning: Use of undefined constant comment - assumed 'comment' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/storage/8/dc/90/ajufergs/public_html/blog/wp-content/themes/rowling/comments.php on line 31
Comentário

  1. Renan Tolfo

    Esse texto reflete muito bem a nossa história. Excelente escrito, o autor está de parabéns pelas brilhantes colocações.

Deixe um comentário