Era inverno, como agora. Mas um inverno sulino que honrava os rigorosos invernos de antigamente. Garoa, vento, frio. Um pouco inclinado pra frente, o homem enfrentava o vento oeste. A barra da gabardine adejava. Logo chegaria à esquina da Rua do Cotovelo com a Rua Clara. O chapéu tentava voar, mas o segurava pela aba, puxando-a sobre os olhos. Na esquina, tomou a esquerda e subiu a quadra íngreme da Rua Clara. O esforço acelerava o coração. Os pensamentos não permitiam que sentisse o desconforto da intempérie. Havia pouco mais de uma quadra a caminhar. Precisava definir, passo a passo, como agiria. Tinha que estar pronto pra qualquer imprevisto. Devia prever os imprevistos. Chegou ao alto da Rua Clara, esquina com a Formosa. Ali, sim, o vento era o senhor de tudo. As árvores se dobravam em penitência. Poucas pessoas se arriscavam. Tomou a esquerda pela Rua da Igreja. Faltava pouco. O vento oeste, agora pelas costas, marcava o cabo da arma no flanco direito. O vento o empurrava. Não havia mais como retroceder.
O passado contém a estética da vida. Lá no passado estão as escolhas que as pessoas fizeram, as soluções que acharam, as saídas que encontraram para seus destinos, frente a desafios, a problemas, a tarefas que a vida lhes apresentou. É encantador desvendar, na neblina do tempo, como teria sido a vida das pessoas e elas mesmas, numa época em que os meios, as circunstâncias, as necessidades eram muito diferentes de hoje. Nós decorremos daquele tempo, daqueles meios, daqueles hábitos, e logo nos tornaremos passado pras gerações que virão.
Entre as tarefas comezinhas de uma sociedade está a de dar nome às coisas. Às coisa novas. Quanto às antigas, já devem ter seu nome, recebido a seu tempo.
No Crátilo, famoso diálogo platônico, Hermógenes indaga a Sócrates sobre o verdadeiro nome das coisas e sobre a capacidade de definição única que seria atributo desse nome perfeito. Bem mais tarde, um poeta sintetizaria assim o que poderia ser uma conclusão do raciocínio desenvolvido no diálogo: “Si (como el griego afirma en el Cratilo) / el nombre es arquetipo de la cosa, / em las letras de rosa está la rosa / y todo el Nilo en la palabra Nilo.”
Não me parece que o diálogo (Crátilo) aponte para uma conclusão tão nítida como esta formulada por J. L. Borges (que a utiliza para propor um poema chamado El Golem). Porém, boa parte dele trata de quem teria autoridade ou legitimidade para nomear as coisas. Eis o ponto.
Por mais que nos concebamos como um animal histórico, temos o vício natural de raciocinar e agir como se os fatos do nosso tempo fossem os verdadeiramente relevantes. Como se as pessoas desse tempo, ou de um passado próximo, ainda presente, fossem os principais heróis ou bandidos da história toda, merecendo a glória e o castigo, respectivamente. Às vezes não nos damos conta de que o que está ocorrendo agora já aconteceu inúmeras vezes, e repetimos os mesmos equívocos, cumprindo uma espécie de infeliz lei do eterno retorno.
No mesmo poema, pouco adiante, Borges sentencia: “Los artificios y el candor del hombre no tienen fin.” Esse diagnóstico do poeta, sim, é certeiro. Cada tempo se julga o senhor da verdade; cada geração se arvora no direito de nomear e renomear as coisas. Há prepotência e há vaidade nisso.
Melhor seria que a coisa mantivesse seu recebido e merecido nome, revelado no seu surgimento para a história, dado pelas pessoas daquele tempo. Se mais não fosse, carregaria a explicação da coisa e do próprio nome. Se mais não fosse, seria cheio de história, de vida, de tempo. Estimularia a perguntar: por que as pessoas denominaram assim?; o que havia na origem que deu vida a esse nome?; o que pensavam, o que enfrentavam, como viviam as pessoas para nomearem (valorarem) assim? Conteria hábitos, agruras, alegrias; estaria cheio de humanidade. Se mais não fosse, teria a autoridade e a legitimidade que a origem confere.
Me pergunto, o que diz o nome Bento Gonçalves com a Estrada do Mato Grosso que leva a Viamão? Teria Bento Gonçalves aberto aquele caminho? (Aliás, teria ele fundado a cidade serrana de mesmo nome?) E o que teria a data de 24 de outubro com o Caminho da Aldeia dos Anjos (Gravataí)? Portásio Alves e Osvaldo Aranha teriam aberto ou transitado na borda da Várzea, pelo Caminho do Meio (do meio porque fica entre as outras duas saídas da vila, recém referidas, Caminho da Aldeia dos Anjos e Estrada do Mato Grosso)?
As gerações (ou algumas pessoas por elas) tem esse impulso cronocêntrico (natural, mas às vezes inadequado ou exagerado) de homenagear certos vultos ou episódios alterando os nomes de coisas antigas. Já no aspecto estético, essas emendas normalmente são piores do que o soneto. E se acaba por apagar a pequena história das coisas, e, um pouco, a própria história.
Se, no fragmento do início, substituíssemos os nomes das ruas pelos atuais (Riachuelo, João Manoel, Duque de Caxias) não pareceria uma outra história? A singeleza dos nomes de origem confere simplicidade, beleza, humanidade à história. Qual o vínculo do Duque de Caxias com a história da Rua da Igreja? Teria morado ali? E o do General João Manoel com a Rua Clara? E o do General Osório com o Alto da Bronze? Que desperdício estético! A Rua Formosa, o Alto da Bronze, a óbvia mas linda Rua da Igreja, a Rua do Poço, a resistente Rua da Praia… Nomes lindos, autênticos, significativos, jogados ao porão poeirento do passado, onde poucos remexem.
A história não para. Os vultos e episódios se sucedem. Abrem-se ruas novas, constroem-se viadutos, pontes, edifícios, criam-se escolas, instituições, fundações, etc. Coisas suficientes para eternizar o reconhecimento e a gratidão do nosso tempo com os nomes dos homenageados de agora. Não precisamos apagar o nome que o cotidiano já definiu e a sociedade acolheu. Essa é a forma silenciosa da história se contar. Cada coisa tem seu pequeno trecho, expressivo e revelador, encaixado no enorme quebra-cabeças do passado.
Claro que a história é uma criação do homem. O contar e o recontar o passado, a invenção e a reinvenção dos mitos, o nascimento e o esgotamento das verdades consensuais são infinitos processos sociais. Igual ao mito e à verdade, o passado é algo muito humano. (Somos contos contando contos, nada.) Porém, o nome das coisas está posto, adquirido e merecido no seu tempo natural como um marco cravado na história a contar sobre nós.
O tempo, o implacável tempo nos deixará. Logo seremos uma geração remota, não melhor nem pior do que as outras. Não somos o senhor dos tempos. Deixemos que a história se conte, natural e autêntica, pelo menos no quanto é possível ela se contar. O resto, O resto é sombra de árvores alheias.
Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.
Maria Helena Rau de Souza
Oi Shawn
Simplesmente bárbaro o teu texto!
Um grande abraço
Maria Helena Ray de Souza
Schaan
Valeu, Imperatriz!!! Um grande beijo pra ti!