A pandemia impactou a todos de maneira brutal, em especial após o mês de fevereiro de 2020. Mergulhamos em um vórtice poderosíssimo de dor, sofrimento e necessidade de repensarmos praticamente tudo relacionado às nossas vidas.
Será que já podemos retirar algumas lições do que vivenciamos nesse período?
Com certeza, pois a resposta de Sólon à pergunta do Rei Creso [Quem era o homem mais feliz que o filósofo já havia conhecido?] permanece atual e vibrante:
“Assim, Creso, um homem é em tudo vicissitude. Para mim, tu pareces que és muito rico e rei de muitos homens; e sobre aquilo que me perguntaste, eu não te responderei antes de ser informado se terminaste bem sua vida” (Heródoto de Halicarnasso)
Caso o leitor amigo queira aprofundar essa questão, sugiro a leitura dos seguintes artigos publicados no Blog O Mundo Além dos Autos da AJUFERGS:
Escrevo este texto entre julho e agosto de 2021. Pude rever diversos conceitos e ressignificar muitos sentimentos. Peço licença ao leitor para que permita à sua alma, por alguns instantes, vibrar em uníssono comigo. Advirto, desde já, que o presente texto tem por mira consolar e reforçar o ânimo de todos, o meu inclusive.
A mitologia é poderosa ferramenta criada pela humanidade para meditar sobre a alma humana (psique) e permitir que os ensinos fossem passados de geração em geração. Povos analfabetos repetiam as músicas e poemas cantados pelos poetas. Era assim no tempo da “Ilíada”, permanece assim até hoje.
Não se tem certeza alguma sobre se Homero existiu. Pouco importa. A “Ilíada” era cantada por todo o mundo antigo nas diversas praças das cidades. Qual o segredo para conseguir reunir os cidadãos para ouvir um artista cantar uma história que todos já sabiam, que Ílion (Tróia) seria destruída?
Todos sabiam que a cidade protegida por Poseidon e Afrodite seria devastada pelo exército grego apoiado por Athena e Hera. O que os atraía? Imagino que fosse a expectativa de serem surpreendidos pela capacidade de o cantor apresentar suas lentes coloridas quando olhasse novamente a emocionante história. Penso que tal curiosidade explique o fenômeno do cinema Titanic.
As musas são as 9 filhas de Zeus e Mnemósine (memória) e têm por missão relembrar os grandes feitos dos deuses e dos homens. São elas Calíope (Poesia Épica), Clio (História), Érato (Poesia Romântica), Euterpe (Música), Melpômene (Tragédia), Polímnia (Hinos), Terpsícore (Dança), Tália (Comédia) e Urânia (Astronomia). Foram geradas após a façanha de Apolo ter matado a Píton, a fim de que jamais fosse esquecido esse momento grandioso (“Metamorfoses”, Livro I, versos 416 a 451).
Aliás, a morte da Píton (entidade poderosíssima do passado titânico) cria para Apolo a missão de cumprir com a tarefa que esta cobra gigantesca até então cumpria – as profecias para os mortais encarnados. Por isso, as sacerdotisas de Apolo em Delfos recebiam o nome de Pitonisas ou Sibilas.
Quer aprofundar esses e outros temas de mitologia? Recomendo o Podcast Noites Gregas do Professor Moreno, dica preciosa do Doutor Jorge Antônio Maurique. Confere lá: especialmente o episódio #30 (“O que são os Oráculos?”). Muito conhecimento, arte e diversão.
O conhecimento humano sempre foi transmitido para as gerações posteriores através das filhas da memória. Quantos cantos, quantas histórias (ou seriam estórias) sempre com o mesmo objetivo: permitir que as gerações vindouras lembrassem dos grandes feitos (heroicos e/ou trágicos) e meditassem sobre suas lições.
Essa capacidade permanece ao longo de toda a história da humanidade e nos acompanhará sempre, pois onde há humanidade, há lições e melhoramento. Sempre, inclusive em tempos de pandemia.
Com a invenção de Johannes Gutemberg no século XV (um pouco antes da descoberta da América), os livros tornaram-se acessíveis e permitiram, por exemplo, que as teses de Lutero pudessem ser conhecidas por todos os europeus letrados no século XVI e seguintes.
Tal fato é importantíssimo, tanto que Rui Tavares ressalta que os hussitas da República Tcheca (capitaneados por Jan Huss no século XIV) possuíam pensamentos muito semelhante aos dos luteranos. Os luteranos não conheciam muito bem o pensamento hussita. Ao que parece, o meio de publicação evoluiu e com ele o pensamento pôde se propagar como nunca antes na história da humanidade.
Esse e outros episódios estão no Podcast Agora, agora e mais agora, de Rui Tavares, publicado a partir do momento em que ele ficou, literalmente, ilhado nos Açores após ter ido visitar seus parentes e ser impossibilitado de partir em razão do início da pandemia e do lockdown imposto por Portugal.
Conheci esse podcast através da indicação do amigo erudito Vinícius Alievi Pinheiro. Vale conferir todos os episódios no Spotfy – clique aqui.
Vivemos em um tempo em que a internet permite a publicação de sites e podcasts que nos dão acesso ao pensamento de muitos de maneira quase instantânea. Nesse novo tempo a pandemia nos impactou.
Nos sentimos como prisioneiros e definitivamente afastados de nossa vida, de nossos amores e de perseguir nossos ideais. Um sentimento de luto tomou conta de nossos corações. Perdemos amigos e perdemos hábitos. Devemos perder a esperança? De modo algum. Devemos sempre manter a esperança. Mas como?
Talvez uma obra do século XVII possa nos orientar nessa certeza.
François Salignac de La Mothe Fénelon era sacerdote católico e foi escolhido pelo Rei Sol (Luís XIV) para ser preceptor do Duque da Borgonha, o Delfim de França. Fénelon aceita o encargo e inicia a tarefa em 1689. Filho do rei mais poderoso de seu tempo, o menino iria sucedê-lo, o que não ocorreu em razão de ter morrido em 1712, antes do que seu pai. Como educar esse menino? Fénelon utiliza um método interessante, pois cria histórias utilizando o personagem Telêmaco, filho de Ulisses (ou Odisseu), em suas andanças em busca de seu pai, que havia partido para a Guerra de Tróia, sempre acompanhado de um personagem até então obscuro no livro de Homero: que era Mentor, em verdade Athena (a deusa da sabedoria). Tão poderosa foi a repercussão da obra de Fénelon que até hoje – em 2021 – o significado da palavra “mentor” decorre exatamente desse personagem. Telêmaco é o Delfim de França e Mentor é a sabedoria que o instrui. Muitas lições são lindíssimas. Recomendamos a leitura. Cabe-nos, aqui, transcrever uma dessas lições.
Canta-nos, ó deusa, a esperança de Telêmaco:
“Nesse ponto, Calypso interrompeu Telêmaco dizendo: Bom, o que fez então você, que na Sicília havia preferido a morte à escravidão?
“Telêmaco respondeu: Minha infelicidade crescia sem cessar, eu não tinha mais a mísera consolação de escolher entre a escravidão e a morte. Eu me tornava escravo e colhia, por assim dizer, toda a aspereza desse destino. Não me restava mais nenhuma esperança e eu não podia dizer uma palavra para tentar me libertar. Mentor contou-me, mais tarde, que ele havia sido vendido a etíopes e ido com eles para a Etiópia.
“No que me toca, eu chegara a um deserto horrendo: havia areia abrasante no meio das planícies e neve, que não fundia jamais e causava um inverno eterno, no cume das montanhas. Para alimentar os rebanhos, havia pastagens apenas entre os rochedos, no meio das encostas das montanhas escarpadas. Os vales nessa região são tão profundos que até os raios do Sol neles penetram com dificuldade.
“Eu não encontrava outros homens nessa região além dos pastores, tão selvagens como a própria região. Eu passava as noites deplorando minha desdita e os dias seguindo um rebanho para escapar da fúria brutal de um escravo mais graduado que, esperando obter liberdade, acusava os outros sem parar, para valorizar perante seu dono o zelo e o afinco com que cuidava dos seus interesses. Esse escravo chamava-se Butis. Um dia, com a dor acossando-me e não podendo mais suportar penas, eu me estendi sobre a relva perto de uma caverna.
“Nesse momento notei que a montanha inteira tremia: os carvalhos e os pinheiros pareciam descer de seu cume, os ventos retinham seu sopro. Uma voz impressionante saiu da caverna e me fez ouvir essas palavras: Filho do sábio Ulisses, é preciso que, como ele, você se torne grande pela paciência. Os príncipes que sempre foram felizes não são mais dignos de sê-lo, pois a indolência os corrompe, a arrogância os embriaga. Você poderá ser feliz se superar suas penas e se jamais as esquecer! Você reverá Ítaca e sua glória alcançará até os astros. Quando você for senhor de outros homens, lembre-se de que foi fraco, pobre e sofredor como eles; seja alegre aliviando-os, ame seu povo, deteste a bajulação, e saiba que você será grande na medida em que for moderado e tiver coragem para vencer as paixões.
“Essas palavras divinas penetraram até o fundo do meu coração e fizeram renascer a alegria e a coragem. Eu não senti esse horror que faz os cabelos levantarem-se sobre a cabeça e gela o sangue nas veias quando os deuses se comunicam com os mortais. Eu me levantei tranquilo e, de joelhos, as mãos levantadas para o céu, adorei Minerva [Athena], a quem acredito dever esse oráculo. Imediatamente me senti um novo homem: a sabedoria iluminava o meu espírito, eu sentia possuir uma doce força capaz de moderar todos os desejos e deter a impetuosidade de minha juventude. Consegui ser querido por todos os pastores do deserto: minha serenidade, minha paciência, minha justiça pacificaram enfim o cruel Butis, sob o qual se encontravam os outros escravos e que tinha querido, inicialmente, atormentar-me.
“Para suportar melhor o desgosto da escravidão e da solidão, procurei livros, pois eu estava prostrado de tristeza pela falta de algum estudo que pudesse nutrir meu espírito e sustentá-lo. Felizes, dizia-me eu, os que desgostam dos prazeres violentos e se contentam com a doçura de uma vida inocente! Felizes os que se entretêm instruindo-se e se deleitam cultivando seu espírito com as ciências. Em qualquer lugar em que a sina inimiga os jogue, eles portam sempre algo com que se entreter, e o tédio, que devora outros homens no mesmo meio dos prazeres, permanece desconhecido para aqueles que sabem se ocupar com alguma leitura. Felizes daqueles que amam ler e não se encontram, como eu, privados da leitura!” (Fénelon em As Aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses, Livro Segundo, páginas 23 e 24).
Não seria a escravidão no deserto e o respectivo desânimo a mais perfeita comparação com o momento atual da pandemia? Paciência diante do desespero, a fim de reencontrar a alegria e a coragem.
Poderá o leitor redarguir que se trata de uma obra de ficção e distante no tempo. Verdade. Mas não contém essa estória ensinamentos profundos? De qualquer maneira, gostaria de contar a história de um homem que passou por dificuldades profundas e pacientemente viu renascer a alegria e a coragem.
Viktor Frankl era judeu e médico psiquiatra na Áustria. Iniciada a Segunda Guerra Mundial, ele e toda a sua família (inclusive a mulher que estava grávida do primeiro filho) são presos e enviados para diversos campos de concentração. Viktor lá permanece preso até a sua libertação pelas forças aliadas somente no final da guerra. Descobre que toda a sua família havia morrido nos campos de concentração.
Escreve suas memórias e reflexões sobre a sua prisão e sofrimento de maneira anônima como instrumento terapêutico para tentar curar sua alma profundamente ferida. Os amigos o encorajam para publicar suas anotações como de sua autoria. Vem a lume o livro “Em busca de sentido” (título original em alemão: …trotzdem Ja zum Leben sagen: Ein Psychologe erlebt das Konzentrationslager, ou “apesar de tudo dizer sim à vida: um psicólogo vivencia o campo de concentração”, em tradução livre).
O que manteve esse homem vivo durante o período em que esteve preso? O que manteve esse homem com a certeza de que sua vida tem sentido mesmo depois de libertado e constatada a morte de seus amores? Ele havia calculado que a chance de sobrevivência em um campo de concentração nazista era de 1 em 28, ou seja, somente um em cada 28 presos sobreviveram. Como ele conseguiu? Recomendo a leitura.
Pretendo, apenas, transcrever uma pequena parte do livro, que nos trará a certeza de que nossa vida tem sentido, apesar de tudo.
Canta-nos, ó musa, a coragem de Viktor:
“Não é necessário dizer que nem todo caso de depressão pode ser atribuído a um sentimento de falta de sentido. Tampouco o suicídio – a que a depressão, às vezes, leva a pessoa – sempre é o resultado de um vazio existencial. Contudo, mesmo que todo e qualquer caso de suicídio não tenha sido levado a cabo por causa de um sentimento de falta de sentido, é bem possível que o impulso de tirar a vida tivesse sido superado se a pessoa tivesse estado consciente de algum sentido e propósito pelos quais valesse a pena viver.
“Se, portanto, uma forte percepção de sentido cumpre um papel decisivo na prevenção do suicídio – como intervir nos casos em que há risco de suicídio? Quando jovem passei quatro anos como médico do maior hospital estatal da Áustria, onde estava encarregado do pavilhão dos pacientes em depressão profunda. A maior parte deles havia sido admitida depois de uma tentativa de suicídio. Certa vez, calculei que cheguei a tratar cerca de doze mil pacientes durante aqueles quatro anos. Acumulei então um bom acervo de experiências, do qual ainda faço uso sempre que sou confrontado com alguém que tem tendência ao suicídio. Costumo explicar a tal pessoa que os pacientes repetidamente me contam como estão felizes pelo fato de não terem conseguido se matar. Semanas, meses, anos mais tarde, dizem-me eles, descobriram que havia uma solução para seus problemas, uma resposta à sua pergunta, um sentido para suas vidas. “Mesmo que a chance de que as coisas melhorem seja apenas uma em mil”, continua minha explicação, “quem pode garantir que no seu caso isso não acontecerá, mais cedo ou mais tarde? Mas em primeiro lugar você tem que viver para enxergar o dia em que isso pode acontecer, precisa sobreviver para ver nascer aquele dia, e, de agora em diante, a responsabilidade da sobrevivência não o deixará mais”. (Viktor Frankl, Em busca de sentido, p. 165 e 166).
Leitor amigo, nossa vida tem sentido, apesar de tudo. Temos a possibilidade de obter auxílio psiquiátrico e psicológico, bem como de contar com o CVV (o Centro de Valorização da Vida) através do fone 188 ou do site. Com ajuda, veremos nascer o dia em que há uma solução para nossos problemas e uma resposta à nossa pergunta, um sentido para nossa vida.
Mantenha-se vivo e exercite a paciência ativa, com a certeza de que a alegria e a coragem tomarão conta de nossa alma. É matemático. É da lei. Saúde e paz para você.
Referências bibliográficas (ou dicas de leitura!):
AGORA, AGORA E MAIS AGORA – podcast do Spotfy, acessado em 26/08/2021.
CVV – página da interne, acessado em 26/08/2021.
FÉNELON, François Salignac de la Mothe, As aventuras de Telêmaco, filho de Ulisses (tradução de Maria Helena C. V. Trylinski), 1a ed. – São Paulo: Madras, 2016.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 46 ed. – São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2019.
HERÓDOTO, Histórias: livro I, Clio. Tradução, introdução e notas de Maria Aparecida de Oliveira Silva. – São Paulo: EDIPRO, 2015.
HOMERO. Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. 1ª ed. – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.
KERÉNYI, Karl. A mitologia dos gregos: Vol. I: a história dos deuses e dos homens. Tradução de Octávio Mendes Cajado – Petrópolis: Vozes, 2015.
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana: volume 1. Tradução de Aldo Della Nina. Edição 1997 – São Paulo: Opus, 1991.
NOITES GREGAS, site, acessado em 26/08/2021.
O MUNDO ALÉM DOS AUTOS – blog da AJUFERGS – acessado em 26/08/2021.
OVÍDIO. As Metamorfoses. Organização, Mauri Furlan, Zilma Gesser Nunes; tradução. Cláudio Aquati… [et al.] – Florianópolis: Editora UFSC, 2017.
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