AGOUROS E OUTRAS CIRCUNSTÂNCIAS

Faz muito tempo.  Foi logo depois do falso assassinato do tatu-bola.  O Bloco da Laje estava iniciando seus movimentos na praça do Museu do Trabalho, no início da Rua da Praia, perto do Gasômetro.  Não se sabia, mas muito antigamente o local fora conhecido como Largo da Forca: durante o império, ali ocorriam as execuções dos condenados.  Os enforcamentos.  Isso pode ter contribuído: houvera injustiças, houvera ódio, houvera espíritos maus.  (Nem sempre a morte é peremptória.)

Era um fim de tarde início de noite de uma sexta-feira.  Como sempre, o público acorreu.  O povo da rua também.  Mendigos, doidos, alcoólatras.  Foi nessa leva que a louca chegou, olhando para tudo com olhos de uma outra história. Enquanto a música o canto a dança embalavam, embebiam e se impunham, a louca agravava as coisas e os fatos no espanto dos seus olhos vidrados.

Porém, cresciam as gentes e a folia.  O bloco a todos compelia, dando voz e movimento, elevando o riso em expressão do sofrimento, imolando a dor em comunhão e sacramento.

A noite entrou.  Foi se aprofundando.  Os corpos bêbados de música de ritmo de paixão eram marionetes à mercê dos fios com que os deuses comandam a humanidade.  Quem de longe os visse em meio à praça, entre as sombras horizontais das árvores lançadas pelas poucas e fracas luzes dos arredores, os vultos lúgubres e lúbricos, os movimentos extáticos, teria certeza de que, corporificados, os deuses comungavam em comunitário regozijo.

A louca, com seus olhos enormes e sérios, observava tudo e tudo percebia.  Por enquanto, espectadora, não agente.

O BLOCO DA LAJE

Na verdade, era um ensaio do bloco.  O povo participava sem distinção.  Quem chegasse não saberia dizer quem era do bloco e quem não era.  Todos se igualavam no exercício da alegria.  Bastava estar para ser.  Não havia diferença entre espectador e atuante; não havia ritos de passagem; não havia iniciação.  Tudo era fim.

O bloco era algo inexplicável naquele tempo. Não tinha grandes puxadores de letra; não tinha ainda instrumentos de melodia; e a bateria, por mirrada, quase não existia.  O espanto, porém, ganhava a cena.  E a alma, a alma não era pequena.

Na fundação fora redigido um documento que o definia como um grupo aberto de atuadores de rua, de adoradores da noite e do dia, do sol e da lua; de sectários de antigas escrituras, de missionários de novas liturgias; cultuadores do gesto e da harmonia, do sol e da chuva, da arte e da magia; e intransigentes operários da tristeza e da alegria.

A força estava na harmonia uníssona das vozes, nas interações dos pares e dos grupos, na sólida dinâmica do todo conjunto, engrandecido, denso e contagioso, ágil no lançar seus tentáculos e agregador ao trazê-los de volta ao corpo, onde a alma espontânea se define e instila.  Movimentos de vento que se esgarça e reagrupa, movimentos de mar que ondula em suas vagas poderosas.

Mas não apenas a alegria e a liberdade estavam ali no espaço público da praça.  Na praça (que, sempre se disse, “é do povo”) estavam também a Coca-Cola, a Copa do Mundo e o tatu-bola.  Estavam os interesses financeiros e de marketing, de empresas e empresários em negócios com a administração pública, que destinava áreas de uso do povo comum ao uso comercial restrito e exclusivo daqueles.  E estavam os símbolos da Coca-Cola e da Copa do Mundo, o tatu-bola.

O PRECEDENTE

Dois anos antes, o tatu-bola fora escolhido símbolo da Copa do Mundo de Futebol de 2014.  Assim que escolhido, enormes bonecos infláveis de tatu-bola foram expostos em lugares públicos pelo país.  Um deles, em frente ao Mercado Público de Porto Alegre.  Tudo sob o patrocínio insuspeito da Coca-Cola.

Em verdade, não era exatamente o bicho tatu-bola.  Quer dizer: não era uma representação realista do animalzinho.  Era, sim, uma estilização que resultava não se parecer, o representante boneco, nem com tatu e muito menos com bola.  Pior: o bicho tatu-bola não existe aqui no sul.  Existem outros tatus (o peludo, o mulita), mas o bola não.  É habitante da caatinga, bem ao norte.  Isso, claro, deu um gostinho de exclusão, de marginalidade, que as periferias frequentemente nutrem quanto às metrópoles, e que aqui no sul  já tomou formas bem fortes, além de alimentar o orgulho pela divergência.

Mas simbolizava.  Simbolizava a Copa, a hospitalidade, a fraternidade, e não sei mais o quê.  (Essas coisas que a humanidade, quando precisa dar um tom ético para seus negócios, gosta de dizer que promove.)

Ocorre que o tatu estava no lugar errado na hora errada.  E o destino não faz acordos, nem com homens nem com tatus.

A LITURGIA

Quem é o cavaleiro / que vem lá de Aruanda / é Oxossi em seu cavalo / com seu chapéu de banda. /  Ele é filho do verde, / ele é filho da mata, / saravá, nossa senhora, / a sua flecha mata. / Vem de Aruanda, eh! / vem de aruanda, ah! …

Os corpos, multiplicados pelas sombras, vibravam exultantes de plenitude mística no paroxismo sensual de uma batalha pacífica, onde as garrafas, carregadas pelo gargalo, eram tacapes primitivos e brutais, ou, erguidas aos lábios, oblíquas, eram trombetas convocando os exércitos ao fim dos tempos.

Depois, o ritmo lento do samba-canção elevou as almas e a tristeza.

Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor. / Hoje pra você eu sou espinho / espinho não machuca a flor. / Eu só errei quando juntei minh’alma à sua / o sol não pode viver perto da lua. …

E foi ao fim desse canto que uma lua cheia enorme elevou-se detrás dos prédios do leste; e foi ao fim desse canto, ainda inconcluso, porque a cena não se pode sustar, quando os puxadores se entreolhavam, como sempre, para sintonizar o caminho a seguir, para encaminhar a próxima cena, para ditar a próxima dança, quando as vozes minimizavam-se tangenciando o silêncio, quando o movimento dos corpos parecia mal embalar-se atendendo a uma brisa imaginária; foi então que a louca interveio.  A voz gutural, como se rasgasse a carne ao sair; a ira antiga que a esquizofrenia carrega; a fúria medieval dos suplícios da carne e do espírito, dos cárceres e cilícios, das fogueiras e das rezas.

A SAGRAÇÃO

– Parem!  (Atenção.)  Parem!  (Espanto.)  Parem!  (Apreensão.)

Um silêncio tenso esparramou-se pelo povo: olhos assustados, corpos vacilantes, espíritos confusos.  A voz áspera prosseguiu, imperativa ainda no início, meio pausada, como se fosse discursar, mas tomando, ao fim, certa impostação melódica.

– Estamos à beira de um rio!  Oxum é a mãe das águas!  Quem não cantar por Oxum / a tristeza há de levar!

Segundos brevíssimos de hesitação.  Mal e mal audível, sorrateiramente, uma voz feminina quebrou a perplexidade.  Eu vi mamãe Oxum na cachoeira…  As outras vozes, pianíssimo, quase tristemente, abraçaram aquela voz solitária. … sentada na beira do rio / colhendo lírio, lírio eh / colhendo lírio, lírio ah / colhendo lírio pra enfeitar o seu gongá.  As vozes foram crescendo, como se alegrando na triste melodia, como se definindo num ritual litúrgico, como se elevando e ganhando força junto aos corpos vibrantes, até culminarem num êxtase comum de almas, de corpos, de poesia.  E retomaram, sem arrefecer:

Eu vi mamãe Oxum na cachoeira / sentada na beira do rio / colhendo lírio, lírio eh / colhendo lírio, lírio ah / colhendo lírio pra enfeitar o seu gongá.

Ela, que olhava rija e séria, de repente abriu-se num sorriso comovente, e foi, aos poucos, aliviando o corpo das tensões que duramente a dor, o medo, a vida haviam incrustado nele para sempre.  Agora cantava e dançava igual a todos, massa movente, vida de cristal e lodo. Não exatamente como os outros, mas do modo possível para os loucos, esse entrechoque de alegria e medo, como se a pedra fosse derreter o fogo. O casaco enorme e negro se armava, deixando à mostra a camisa, talvez marrom, talvez cinza, onde se descobriam, volta e meia, as tetas rijas, ainda alçadas, talvez aptas a dar prazer e vida.  O rosto, descontraído da alegria, não era feio, e, mal contido num lenço vermelho, se erguia o cabelo, hirto de glória e desespero.

A VIDA PREGRESSA

Maria de Lourdes Monteiro da Silva se chamava.  A história remota é difícil recuperar.  Parece que seu pai era originário da Colônia Africana, ao pé do morro do Rio Branco.  Ou seria seu avô?  A mãe era branca.  A loucura teria emergido na perda de um filho.  Um filho espúrio, indesejado.  Quer dizer: indesejado pelos outros; ela o desejava.  O pai fora levado a viajar, pela família de origem italiana, que não aceitava sequer o namoro com uma negra, que dirá um filho.  Com cinco meses de gestação, os movimentos cessaram.  Ela resistira; o filho não.  A confirmação veio com cólicas e contorções: um conjunto de carne, sangue e líquidos expelido no vaso sanitário.  Agora ela não resistiria.  Teve que se ausentar.  Homiziou-se em outro mundo, outro sistema, outra natureza.  Mas a imagem do filho ensanguentado a acompanhava.  Um filho é para sempre; um filho morto é para nunca.

A família decidiu interná-la no São Pedro.  Viveu alguns anos no meio dos loucos.  Não era infeliz ali.  Quando o hospital psiquiátrico começou a ser desativado, a família (o que sobrava dela) vacilou.  Como ela havia herdado um pequeno apartamento e uma pensão de pai militar, uma sobrinha, que mal a conhecia, ajudou-a a se estabelecer no apartamento, até que se apresentasse uma solução. Essa foi a solução. Com o tempo, sua loucura mostrou-se inofensiva, ou, pelo menos, administrável, além de não totalmente incompatível com o cuidado de seus poucos bens e ganhos. Aliás, a loucura até a protegia em certo aspecto.  A sobrinha a amadrinhava, evitando os excessos da desrazão, cuidando da higiene e aparando eventuais dificuldades com os vizinhos.  Fazia isso por gosto e por uma modesta remuneração de curadora, descontada da pensão.  De vez em quando saíam juntas para comer alguma coisa ou caminhar, e a sobrinha tentava insinuar-se naquele mundo insondável de frases e raciocínios incongruentes.  Às vezes parecia deparar-se com o passado da família, anterior a ela.  Falava de um filho, que ignorava, e em alguns momentos parecia tratá-la como filha.

Talvez por nostalgia ao tempo de hospício, lhe aprazia encontrar o povo da rua.

A NOITE

A noite realizava todo o seu encanto.  A lua plena já ascendera ao ápice de sua rota luminosa e descendia, já, ao ocidente.  A cidade dormia.  Na praça, alguns já se retiravam, saciados de êxtase.  Mas o ritual prosseguiria, o bem e o mal, o riso e a melancolia; a dor necessária apenas à alegria.  Prosseguiria.

Um carro verde-escuro com intermitentes sinalizadores vermelhos sobre o teto estacionou junto à praça.  Dois brigadianos desceram.  Passo a passo se encaminharam para o grupo.  Os setenta metros que os separavam foram executados com lentidão, as mãos às costas, os corpos jogando a cada passo.  Às vezes olhavam para a frente, mas quase sempre olhavam para o chão ou para os lados, como se distraídos.  Talvez quisessem ser percebidos com antecedência; talvez quisessem demonstrar serenidade; provavelmente quisessem apenas estabelecer contato e se assegurar de que não ocorreriam exageros.  Deram tempo suficiente para que os que houvessem passado do ponto se recompusessem ou simulassem se recompor.

O episódio do tatu fora desgastante para a Brigada.  O comandante, dias depois, reconhecera a ineficiência da proteção inicial e o exagero da intervenção final.

O ASSASSINATO

As imediações da Prefeitura e do Mercado Público foram o palco do embate.  Havia uma manifestação em frente à Prefeitura contra a afetação de espaços públicos a empresas privadas e a favor de que fossem mantidos à disposição das manifestações artísticas e culturais, do povo e da alegria, em vez dos lucros privados.  Entre tantas outras tribos e avulsos, havia gente do Bloco da Laje ali.  Alguns metros a leste, entre o Mercado Público e a Praça XV, soberbo, elevava-se um imponente tatu-bola, símbolo da Copa do Mundo (e da Coca-Cola).  Em torno dele, um grupo de brigadianos fazia guarda.

Não demorou que um dos manifestantes levantasse a inevitável (maldosa) suspeita de que o poder público (Brigada Militar) protegia o interesse privado, e que ali estava um exemplo de espaço público vedado ao povo e destinado a proporcionar lucros à Coca-Cola.  Identificado o inimigo, imediatamente o grupo deslocou-se para ele.

Não tivesse terminado em violência, o que ocorreu ali teria sido apenas ridículo.  Os manifestantes entravam no espaço reservado ao tatu, brincando, dançando, fazendo micagens, enquanto os brigadianos corriam-lhes ao encalço sem qualquer eficácia, salvo a de parecer que brincavam todos de um jogo de já-te-pego-e-já-te-largo.  A coisa ia indo assim até que o tatu, violado em sua intimidade e desprezado na brincadeira, adernou para um lado, adernou para outro, deu um profundo suspiro de revolta ou de tristeza e desfaleceu, desconstituindo-se fragorosamente.  Estupefação geral.

Um assassinato muda tudo.  As autoridades superiores foram comunicadas.  Vinte minutos depois a Brigada de Choque prodigalizava gás lacrimogêneo, cacetadas e tiros com balas de borracha a quem estivesse ao seu alcance num raio de três quadras do epicentro.

Um comentarista de televisão, no dia seguinte, verberava contra os assassinos do tatu.  Inflava-se dito senhor e inflamava-se, porque o tatu fora covardemente destruído, porque o país não estava preparado para receber a Copa, porque o futuro da nossa sociedade periclitava e porque aquilo era uma barbaridade.  A morte do tatu era o símbolo da derrocada moral.  Nossa sociedade não estava segura.  E não estaria enquanto estivessem soltos pelas ruas esses adversários da ordem, esses violadores impudentes do ambiente, esses iconoclastas esquizofrênicos.  Esses!  Esses que choravam quando era para rir!  Que riam quando era para chorar!  Esses que, em vez de trabalharem, iam brincar nas ruas.  Nossa sociedade não podia mais suportar as repetidas agressões aos seus valores mais caros.

Muita gente chorou a morte do tatu.

O ENCONTRO

Desde que o carro estacionara, alguns dos líderes já o haviam percebido.  Foram comunicando uns aos outros com olhares, com gestos teatralizados, com reverências.  Na metade do caminho, todos já sabiam da aproximação, ainda que um observador atento não percebesse qualquer quebra na cena.  A música, porém, e os gestos foram se tornando suaves, calmantes, acolhedores.  Sem qualquer palavra, naturalmente, optou-se pelo refrão litúrgico que identificava o bloco:  Quem quiser brincar, / quem quiser que brinque agora. / Quem quiser brincar, / quem quiser que brinque agora.

Atingiu um tom tão baixo que, não fosse noite, tarde da noite, não se ouviria.  Era já uma cantilena de ninar.  E assim foi que, inusitadamente, surgiu no repertório uma cena e uma música que jamais ocorrera.  Quando já se esgotava o “quem quiser brincar”, quando já cansava sua repetição, e já se abria passagem para os brigadianos chegarem ao centro da liturgia, alguém tarareou: ã, rã, rãã / ã, rã, rãã. E as vozes todas desaguaram, suaves mas envolventes: Nana nenê, / se não o bicho vem. / Papai foi à caça …

Foram dois ou três minutos, eternos, de um embalo enternecente.  Porém, assim que a cena se extinguisse, a tensão mostraria suas cordas mais agudas.

Feito água derramada que, aos poucos, vai sendo absorvida pela terra e de repente não há mais, o canto foi cessando, cessando, até que calou.  O silêncio era completo.  Os brincadores ainda mantinham a última pose, estáticos e extáticos.  Passou algum tempo.  Então os rostos foram se voltando para os brigadianos.

O diálogo imprevisto

Um deles perguntou:

– Quem é o responsável aqui?

E o imponderável mostrou seu rosto: a louca, que a uns metros dali, mimetizada na diversidade do povo, nem era mais percebida; a louca, talvez importunada em seu êxtase, sentindo, quem sabe, o clamor antigo dos enforcados, ressequidos de cólera à aproximação da força pública ou aterrorizados à iminência de assistirem mais uma vez ao espetáculo da sua morte; a louca, na defesa da alegria e dos injustiçados, dos corpos e dos espíritos, com sua voz bíblica e seus olhos apocalípticos, agigantou-se.

– Eu sou a responsável!

Alguns riram, nervosos.  Outros tentaram intervir, meio tímidos (o bloco era aberto e naquele tempo não tinha definições hierárquicas ou de responsabilidades; apresentar-se como responsável supunha certa usurpação).  Os brigadianos oscilaram entre a graça e o desconforto.

A louca voltou à carga com mais força:

– Eu sou a responsável!

Os principais protagonistas, a Rainha, o Presidente, o Cristo, a Noiva, o Sol e o Cafetão, sentindo o enredo que se armava, intervieram, agora abertamente:

– Nós somos os responsáveis!

Antes que os brigadianos pudessem prosseguir, a louca, sentindo-se usurpada e tratando de sustentar seu poder, adiantou-se de dedo em riste, numa eloquência decorada e furiosa:

E avançou ao ponto se suspeitar que poderia afrontar os brigadianos.

 A FORÇA

A paz era um cristal muito fininho.  Havia o episódio recente do tatu; havia, desde antanho, a prática instituída da incontinência policial, havia o passado, repetido e reiterado, determinando as forças policiais à violência.  A intenção de ambos os lados, atuadores e brigadianos, era a melhor possível.  Mas a paz era um cristal muito fininho.

Os brigadianos se postaram.

A ineficácia dos apelos verbais levou alguns dos brincadores a tocar nela, para que não prosseguisse.  Talvez alguém tenha até segurado seu braço.  Então, a memória de todas as contenções, de todas as torturas, de todas as violações que sofrera veio à tona, e ela lançou-se à frente desvencilhando-se e gritando.  Como todos quisessem evitar o confronto, abriu-se um vazio na massa humana, que recuava.  No centro, apenas, os brigadianos e ela.

Eles a receberam na mesma moeda.  Ou melhor: converteram a moeda para o seu padrão monetário.  Ela levou uma cacetada na parte lateral baixa do tórax, onde terminam as costelas, meio nas costas, e, quando se contorcia para cair de dor, foi abraçada por trás pelo outro brigadiano, que lhe deu uma chave com o cassetete no pescoço.  A falta de ar a amoleceu.  Não opôs resistência às algemas.

Algemada, foi conduzida com facilidade à viatura.  Uma passividade surpreendente se apossara dela.  A Rainha e o Cristo ainda tentaram em vão demovê-los.  As ponderações de que era doente, que já se acalmara e que não oferecia perigo sequer foram ouvidas.  Do modo diálogo haviam passado para o modo força.  Partiram.

 AS CINZAS

Sentados no chão, alguns olhavam para o nada; abraçavam as pernas em busca de conforto; escondiam o rosto entre os joelhos. Alguns erravam vagarosos, alternando direções sem cumprir nenhuma, presos aos meandros de um rio que abria caminho entre o assombro e a tristeza.  Poucos falavam.  (Uma viatura da Brigada aproximou-se, fez um lento périplo no largo, parou por alguns minutos, deu a volta e partiu.)  O silêncio, precário de início à espera da música, foi se confirmando aos poucos.  Solidificou-se, enorme e impermeável.  O tempo e a tristeza encarregaram-se de uma diáspora lenta, silenciosa, irremediável.  Aos primeiros raios do sol alguns foram vistos caminhando à beira do Guaíba.  O dia da cidade recomeçava.  Logo a onda vasta das atividades diurnas engolfaria tudo recolhendo os destroços e apagando os rastros.

Como era tarde para se chamar delegado, advogado, familiares, a louca ficou em uma cela de delegacia.  O delegado da manhã, sem entender bem o que ocorrera e achando inadequado mantê-la ali, mandou-a para o presídio.  Passou semanas lá (até que a sobrinha a encontrasse).  Não estranhou o ambiente.  Foi uma presa bem comportada.

A RESSURREIÇÃO

Dias mais tarde, talvez vinte, talvez um mês, viria a notícia: o tatu está vivo e forte.  Não que ele tenha sido internado, tratado e recuperado.  Nada disso.

O delegado que investigava o caso viria à imprensa informar que, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.  Quer dizer, dentre os manifestantes, brindados com cacetadas e balas de borracha da brigada de choque, havia baixas.  Mas eram lesões consideradas leves.  E isso era da rotina das manifestações.  Quanto ao tatu, que era o que importava, apenas havia murchado, não se sabe bem por quê.  O certo é que não havia crime.  Não havendo morto, não há assassinato.  Em síntese, todos haviam se salvado, especialmente o tatu.  Em meio à risada que tomava conta da coletiva, o delegado, entre constrangido e brincalhão, acrescentou: “Foi só encher e mostrou saúde e imponência.  Na verdade, foi uma brochadinha passageira, que não afetou sua capacidade erétil.”

A um jornalista, que chegou quase no fim da coletiva e, não entendendo aquela diversão toda, perguntara diretamente ao delegado o que afinal havia acontecido, respondeu: “O tatu ressuscitou!” E, vendo a hesitação e o espanto do interlocutor, explicou: “Bastou soprar no ventil, uma espécie de respiração artificial, e ele milagrosamente tornou à vida, para a alegria de todos e a salvação de homens e tatus.”

POST SCRIPTUM

Meses depois, num fim de tarde em que os adoradores da alegria reiniciavam a função no mesmo Largo da Forca, quem chegaria lá?  Ela, a louca.  Com olhos de uma outra história.  Imersa em suas águas, olharia para tudo como se algo muito grave estivesse acontecendo.  Aos poucos, a música o canto a dança minariam aquele espectro de suplícios de fogueiras de rezas de cilícios que habitavam as profundezas de seus olhos vidrados, e a felicidade surgiria em corpo tão improvável.

Eu vi mamãe Oxum na cachoeira / sentada na beira do rio / colhendo lírio, lírio eh / colhendo lírio, lírio ah / colhendo lírio pra enfeitar o seu gongá. …

Mas, cuidado!  A alegria é muito perigosa!

Caso brigadianos se aproximassem, uma delegação os receberia.  Longe do vórtice da loucura e da folia.

Voz: Roberto Schaan Ferreira
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