Estimados colegas, magistrados e magistradas federais, demais autoridades, senhoras e senhores.

Em primeiro lugar, eu gostaria de dizer que é uma honra muito grande, e um desafio ímpar suceder a colegas tão brilhantes que já conduziram a nossa associação: Ricardo Nüske, Paulo Paim, Adel Américo Dias de Oliveira, Carla Hendges, Gabriel Wedy, José Spizirri, Rodrigo Coutinho, Fabio Matielo, Gerson Godinho e Rafaela da Rosa. Espero que eu possa também deixar um legado para a nossa associação, e não apenas consumir o legado que vocês deixaram. 

O Poder Judiciário, e sobretudo a Justiça Federal, está sendo, cada vez mais, provocada a mostrar a sua função em meio à inquietante realidade do mundo contemporâneo. Nesse contexto de sociedade de risco, da 4ª revolução industrial, da era da informação e da sociedade em rede, das inovações disruptivas, do antropoceno, das mudanças climáticas e da pandemia, …

…as mudanças estão ocorrendo mais celeremente que outrora, na mesma velocidade estonteante do intercâmbio de informações, do desenvolvimento tecnológico, do fluxo de capitais, da emergência de novos focos de conflitos e do desaparecimento de antigos. Exige-se, pois, de todos os atores sociais, ágil adaptação a esse ambiente dinâmico e volátil, que se altera a cada dia e supera paradigmas e dogmas em reduzido espaço de tempo, muitas vezes de modo imprevisível e irresistível,

De modo que a flexibilidade e a sensibilidade se colocam como qualidades indispensáveis para a sobrevivência das pessoas, das empresas e dos poderes públicos, inclusive do próprio Poder Judiciário.

Não há dúvidas que temos muito a contribuir para que a Justiça Federal saia ainda mais fortalecida desse cenário desafiador, que soma os problemas de saúde pública decorrentes da disseminação transnacional com velocidade antes inacreditável de uma doença, da consequente crise econômica gravíssima, e ainda em clima de considerável turbulência política. O futuro, porém, será escrito pelo nosso empenho e dedicação, e pela clareza da nossa missão.

Antes, um breve resgate histórico da Justiça Federal se afigura relevante trazer neste momento.

A primeira fase da Justiça Federal no Brasil foi fruto da proclamação da República, época em que criado o regime federativo. Instituída em 1890 e inspirada no modelo Norte-Americano, já naquela época se reconheceu aos juízes federais uma função que transcendia a mera aplicação das leis, pois que poderiam declarar nulas as leis contrárias à constituição. Como disse Campos Salles, de poder meramente subordinado que era na época do Império, o Judiciário transformou-se, no final do século XIX, como poder independente, responsável por manter o equilibrio, a regularidade e a propria independência dos outros poderes, e assegurar o livre exercício dos direitos do cidadão.

Essa antiga Justiça Federal, nascida da República velha, morreu na ditadura do Estado Novo, com a imposição da Carta Constitucional de 1937, a “Polaca. E como toda ditadura, o período foi marcado pela hipertrofia do Executivo, o qual contava com amplos poderes e a faculdade de legislar por meio de decretos-leis, até mesmo sobre assuntos constitucionais, reduzindo-se o Legislativo e o Judiciário a poderes meramente anexos e subalternos.

Apenas em 1965 é que a Justiça Federal foi recriada, quando os primeiros juízes federais foram nomeados pelo Presidente, com sabatina do Senado, sendo posteriormente empregado o método do concurso, por iniciativa do então Tribunal Federal de Recursos.

Na época, o futuro da Justiça Federal era incerto. Como escreveu o nosso Desembargador Vladimir Passos de Freitas em obra emblemática sobre a história da justiça federal, os vencimentos eram ínfimos, a Justiça Federal era praticamente desconhecida e comentava-se que seria extinta após o período do regime militar.

Porém, mediante autêntica reação do Constituinte de 1988 às agruras do período autoritário que a antecedeu, foram consideravelmente reforçadas a autonomia administrativa e financeira do Judiciário, como poder da república que é, e a independência funcional dos juízes, e a Justiça Federal alçada a posição relevante na organização do Poder Judiciário brasileiro.

A estrutura da Justiça Federal foi ampliada nos anos seguintes, e sua competência também. Passou a ser conhecida pela sua inovação, tanto quanto em relação à administração e organização das atividades judiciárias, como pela utilização da tecnologia da informação, que foi coroada com a implantação do Eproc, o melhor processo eletrônico do País, que teve como um  dos idealizadores o juiz federal Sérgio Renato Tejada Garcia, que a partir de hoje, para a nossa satisfação, passa a compor o conselho fiscal da Ajufergs.

Assim, a Justiça Federal cumpriu a promessa que já havia sido feita há mais de um século, e se notabilizou pelo controle do poder, de todos os poderes que excedem os limites da Constituição, das leis e dos princípios constitucionais.

Destacou-se pelo controle do poder do Estado sobre os cidadãos, ao glosar atos dos diversos entes e órgãos públicos federais contrários à Constituição, às leis e aos princípios e direitos fundamentais.

E igualmente exerceu, cada vez mais, o controle do poder de tributar, o controle do poder do homem sobre o meio ambiente, o controle também das omissões e das insuficiências da atuação administrativa federal, que muitas vezes atentam contra direitos dos segurados do INSS e daqueles que dependem do SUS para tratar a sua saúde. Assim, não é demasiado dizer que, no desempenho diuturno da atividade jurisdicional, a Justiça Federal contribui para uma sociedade mais justa e solidária, como exige a própria Constituição Federal.

Mas igualmente exerce o controle do poder econômico e político em defesa de uma função estatal proba, ética, principalmente ao se sobressair pelo julgamento de casos rumorosos de corrupção na administração pública.

Esse controle que deve ser cooperativo, é verdade, com a colaboração indispensável do Ministério Público, de advogados públicos e privados, de defensores públicos, servidores e demais agentes públicos e instituições que interagem com a Justiça Federal, como a Polícia Federal, a Receita Federal, as Forças Armadas e todos os demais órgãos e entes do Poder Público federal. Mas um controle necessariamente mediado pela derradeira interpretação de um juiz ou tribunal.

E por falar em cooperação, é preciso lembrar que a Constituição, ao mesmo tempo em que impõe a separação de poderes, requer também a harmonia entre os poderes. Precisamos de mais diálogo, precisamos conter a escalada conflituosa que se abate sobre o país e o mundo. Como bem referiu o jurista gaúcho Juarez Freitas, “beligerância não é destino”.  Porque foi a cooperação que permitiu a evolução do ser humano, é com a cooperação que vamos mitigar os graves danos derivados dessa Pandemia.

E exatamente por cumprir sua função de extraordinária importância para a preservação e aperfeiçoamento do Estado de Direito e para fazer a nossa democracia funcionar é que a Justiça Federal passou a sofrer investidas de toda ordem e de todos os setores, insatisfeitos porque, um dia, um juiz lhes disse: a lei vale para você também! A constituição vale para você também!

A preservação e o aperfeiçoamento do nosso estado de direito depende de um poder judiciário independente e de uma magistratura valorizada. E a legitimidade democrática não se reduz à democracia majoritária, assim como, nas palavras do cientista político italiano Giovanni Sartori, o cidadão não perde sua cidadania com mero exercício do direito ao voto. 

A legitimidade democrática não é apenas aquela estabelecida pela eleição, mas, como diria o historiador francês Pierre Rosanvallon, é também a legitimidade pela imparcialidade, pela reflexividade e pela proximidade com a sociedade civil.

Como referiu com maestria Rosanvallon, “a noção de vontade geral perde sua consistência se for encarada apenas na forma da imediatidade ou do capricho momentâneo dos representantes eleitos. A possibilidade sempre aberta de reformular a vontade geral terminaria, de forma paradoxal, por corroê-la. Seria decomposta ao segmentar-se e submeter-se a perpétuas variações”. Por isso, ele sugere que “as temporalidades do político devem ser pluralizadas, confrontando-se e ajustando-se o tempo vigilante da memória, o tempo longo da Constituição, o tempo limitado do mandato eleitoral e o tempo curto da opinião”.

O Judiciário guarda o tempo vigilante da memória e o tempo longo da Constituição, ao lembrar à sociedade civil e aos governantes que existe um pilar que sustenta o regime democrático e constitucional, que existem direitos fundamentais que não se sujeitam ao utilitarismo do jogo econômico, do jogo político e partidário.

Não por outro motivo, é sempre importante, e hoje de forma ainda mais pronunciada, rememorar o que significa um regime de exceção e um governo autoritário. Trago aqui o exemplo de dois magistrados, que atuaram na época do regime militar, a quem rendo minha homenagem neste momento.

Um deles, meu avô, então juiz de direito, Élido Sampaio Moreira, que, apesar da instabilidade política e do autoritarismo que predominava na época, conseguiu, graças à sua conduta imparcial, apartidária, honesta e isenta, desempenhar sua atividade com justiça, equilíbrio, sem favorecer qualquer pessoa pelos seus vínculos políticos. Sempre reconhecido, em todas as comarcas por onde passava, pelo senso de justiça e retidão de caráter.

E outro juiz, Mario Rocha Lopes, este magistrado, que agentes do Estado tentaram intimidá-lo a assinar mandados de busca e apreensão e mandados de prisão em branco, para validar apreensões e prisões ilegais, conduta que ele se recusou a fazer, tendo enfrentado, com coragem, essa tentativa de intimidação, o que lhe rendeu, mais recentemente, uma homenagem, hoje eternizada em uma placa na sede da AJURIS. Uma frase que vale a pena reproduzir, cada uma de suas palavras, assinada pelo Desembargador Carlos Marchionatti, que Presta homenagem à sua memória, como “exemplo de magistrado justo, independente e destemido, capaz de assegurar a plenitude da jurisdição em hora difícil”.

Me parece relevantíssimo trazer sempre à tona esses fatos, de uma época obscura, em que muitos juízes eram constrangidos a assinar mandados de busca e de prisão em branco, em que magistrados foram cassados por motivações políticas, em que investigações contra determinadas figuras públicas foram engavetadas, para que fique bem presente o tempo vigilante da memória e o tempo longo da Constituição. E que essas experiências, que não podem ser sintetizadas em um breve discurso, sirvam de inspiração a atuais e futuros magistrados, para que assegurem, com imparcialidade, coragem, serenidade, e retidão de caráter, a plenitude da justiça, mesmo em hora difícil.

E para fazê-lo, a Justiça precisa de valorização das pessoas que dela fazem parte, precisa de estrutura e de independência para julgar com imparcialidade, sem capturas ou influências indevidas.

Toda instituição é formada por pessoas. Os avanços da informática e mesmo da inteligência artificial não superam a essência do humano, e não há nada mais humano que julgar com sensibilidade e atenção às peculiaridades do caso concreto. A valorização de uma instituição passa, necessariamente, pela valorização das pessoas que sustentam e fazem acontecer essa instituição. Sejam desembargadores, juízes, servidores, estagiários e terceirizados.

Especificamente em relação aos juízes e desembargadores federais, a AJUFERGS será incansável na luta pela valorização funcional da magistratura, pela proteção à segurança e à saúde dos juízes, e pela melhoria, e não sucateamento, da estrutura da Justiça Federal, inclusive na manutenção e aperfeiçoamento do melhor processo eletrônico do País, como, aliás, reconhecem os principais usuários: os advogados.

Vamos buscar também, com obstinação, a preservação da independência do Judiciário, reconhecida e reforçada pelo Constituinte como reação a experiências ditatoriais do passado, e que agora sofre assaltos sorrateiros, como a aprovação da lei do abuso de autoridade, a tentativa de desmontar a jurisdição criminal, o descumprimento sistemático de decisões judiciais e ameaças a juízes de todas as instâncias.

Podemos não ter o poder de decisão no plano do legislativo e no executivo, mas podemos, sim, contribuir para a tomada de decisão, com a finalidade não apenas de evitar o enfraquecimento da Justiça Federal, mas também, e sobretudo, para influenciar o seu destino e garantir o desenvolvimento da Justiça Federal do futuro. Imparcial, profissional, tecnológica, adaptada às mudanças sociais e econômicas, sempre atenta às ameaças às instituições democráticas, à necessária autonomia das carreiras de Estado, e às agressões aos direitos fundamentais das gerações presentes e futuras.

Por isso, a equipe que vai representar a AJUFERGS no próximo biênio está comprometida, com trabalho, união e foco, a perseguir nossos objetivos mais importantes: a preservação da independência do judiciário e a valorização dos juízes federais, e com isso, proporcionar uma prestação jurisdicional eficaz, eficiente, célere e imparcial.

E para isso, contamos com a colaboração da equipe da AJUFERGS e dos magistrados empenhados em dar o melhor de si para essa missão, aos quais agradeço por me acompanharem nessa relevante missão.

Encerro aqui minha participação.

Muito obrigado.

Voz: Rafael Martins Costa Moreira (áudio extraído do evento em 04/06/2020)
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