Na Inglaterra, há uma multa de 80 libras para quem acionar os freios de emergência de um trem sem que haja necessidade. Em Munique, aquele que for flagrado utilizando transporte público sem ter comprado a passagem antecipadamente, pagará uma multa algo próxima a 40 euros. O comportamento dos cidadãos desses países não deixa a desejar. Realmente, não se vê pessoas acionando freios de emergência por puro deleite, e a maior parte dos residentes paga antecipadamente as passagens, num país cuja honestidade do seu povo faz com que o sistema economize com catracas, cobradores etc., uma vez que a entrada e saída de passageiros nos bondes e nos metrôs da Alemanha é totalmente livre de fiscalização.

Ainda que possa parecer o contrário, não são as penas previstas em lei nem a certeza de punição que governam a conduta desses cidadãos. Oitenta libras pode ser um preço razoável para quem quer experimentar a emoção de parar um trem; quarenta euros correspondem a um mês de passagens em Munique.  E como é muito raro ser fiscalizado (em três anos de cotidiano germânico, fui fiscalizado uma única vez), a punição acaba sendo o equivalente àquilo que se pagaria caso se tivesse comprado as passagens antecipadamente.

Essa separação entre a norma jurídica e a forma como conduzimos nossas vidas, significa que a moral de que nos valemos para tomar decisões do dia a dia não é dependente do Estado: não precisamos necessariamente do Estado para, através da lei e da respectiva fiscalização, nos dizer o que é certo e o que é errado.  E isso faz cair por terra o peso que se costuma dar à impunidade como fator de desgoverno de uma sociedade. Não há dúvidas de que a efetividade do Estado (rectius: aplicação da lei por seus órgãos) é um componente estrutural do bom funcionamento de uma sociedade, mas não é o único e talvez não seja o mais importante. A capacidade individual de adotar decisões moralmente corretas, entretanto, é vital para a higidez de uma sociedade.

A nossa capacidade de discernir o certo do errado é, provavelmente, uma mistura de autonomia pessoal com a coexistência de valores coletivos: de um lado, temos o indivíduo que é capaz de dizer “não” para suas próprias aspirações pessoais; de outro, uma série de padrões de comportamento que são reconhecidos como importantes por uma dada comunidade.

Sem querer parecer antropocêntrico e também sem desprezar o imenso universo de condicionantes que nos vinculam, não é desarrazoado crer que temos capacidade racional de reconhecer os valores culturais que nos cercam (roubar é errado, solidariedade é nobre etc.) e igual capacidade de decidir pela melhor conduta (não roubar, ajudar quem precisa) mesmo que isso possa nos causar um prejuízo pessoal. Por outro lado, descobrir como esses valores morais surgem é algo um pouco mais complexo. Embora pareça correto dizer que os valores são sociais, são culturais etc., inclino-me a dar menos peso à superestrutura, à sociedade, do que dou ao indivíduo. Isso porque valores sociais não surgem sem a ignição provocada pela ação do indivíduo. Eles surgem da prática de atos relacionais e da leitura comum que indivíduos de um mesmo grupo fazem desses atos relacionais.

Numa hipotética sociedade nos seus primeiros dias de existência, eu empresto para alguém uma pedra que tem um bom tamanho e peso para manufatura de outros objetos. Esse alguém usa a pedra, obtém uma certa utilidade dela, e me devolve. Por isso, empresto-lhe uma segunda vez. Aqui, eu percebo o valor a propriedade e apreendo a importância de devolver aquilo que se empresta. Aquele que pediu emprestado também tem a mesma experiência e sabe que poderá contar com a pedra sempre que precisar, pois eu sei que ele vai devolver. Um terceiro me pede a pedra emprestada, porém, não devolve. Eu reajo contra a sua conduta, assim como também reage aquele que estava acostumado a pedir emprestado e a devolver. Nós dois achamos que é importante manter a confiança e que isso auxilia a conservação da nossa sociedade. Nós partilhamos um valor e o terceiro quebrou uma regra importante para o convívio pacífico e útil. Surge a sociedade com seus valores culturais.  E surge a necessidade de um mecanismo de coerção para implementar essa regra moral.

Nessa equação, a primeira vista, chama a atenção a importância da reação do grupo contra aquele que quebrou a regra. Contudo, mais importante do que o Estado é a prática individual que faz surgir os valores coletivos e a adesão a esses valores mediante renúncia de interesses pessoais. De nada adianta uma lei que estabeleça que os livros tomados por empréstimo em bibliotecas devam ser devolvidos no prazo, se as pessoas não partilharem desse valor coletivamente, como algo que esteja acima dos seus próprios interesses. Os custos na recuperação de livros emprestados e não devolvidos, certamente, superam os valores dos próprios livros. É um sistema, pois, que se funciona, se o desvio for a exceção.

Toda sociedade só funciona se o desvio for a exceção.

O reconhecimento de certos valores pelo Estado (matar é crime) é importante, como é importante a implementação prática desses valores (coibir o homicídio). Mas o Estado só é eficaz quando ele atua no desvio de um padrão, no varejo de um grande atacado. O que torna, pois, uma sociedade saudável é a circunstância de que, na sua grande maioria, os cidadãos partilhem um padrão de moralidade e ajam com autonomia tal para deixar de lado suas ambições pessoais de modo a se adequar a esse padrão.

Sim, é necessária autonomia para renunciar às próprias aspirações e agir de forma moralmente justificada. Quem é escravo de seus desejos, não age com autonomia e está longe de agir moralmente.

Isso significa que, se queremos acabar com a corrupção ou com a violência, prender o desonesto é tão importante quanto insuficiente. É como multar o passageiro que viajou sem pagar, aquele que parou o trem para seu mero deleite ou o estudante que deixou de devolver o livro à biblioteca. Não é necessariamente a punição de uns que torna as demais pessoas honestas e faz com que adotem uma conduta moralmente correta.  Tão importante quanto prender o desonesto é acabar com a desonestidade, criando uma sociedade que se justifique moralmente. E o responsável pelos destinos de uma sociedade não é a superestrutura ou a cultura a que nos submetemos. A moralidade de um grupo terá sempre origem na conduta de um indivíduo.

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