As expectativas em relação à Reforma do Judiciário eram grandes. Para debater os diversos aspectos envolvidos, foi programado um encontro de juristas. O evento teve lugar em magnífico hotel na região vinícola gaúcha. É bom que se esclareça desde já: tudo foi patrocinado pelas associações da magistratura, que sugeriram o local. Previsto para iniciar na manhã de sábado, os juristas começaram a chegar por volta das dezoito horas de sexta, formando-se diversos grupos, acomodados no bar do hotel, em clima de confraternização. Houve algumas manifestações de incômodo por parte dos bem casados, pois não foi permitida a presença dos cônjuges e filhos ou qualquer acompanhante.

O tema causava certa agitação no espírito de alguns. Questões polêmicas poderiam levar a um acirramento dos ânimos. Naquele momento inicial, contudo, pairava a cordialidade. A tragédia viria depois. Todos pediram bebida. Um dos mais conservadores preferiu chá com torradas. A ala jovem, cerveja. Um grande grupo degustava vinho, salame e queijo. Num pequeno círculo, rodava um chimarrão com pipoca, cujo odor gorduroso tendia a dominar o ambiente.

Pedi ao garçon o meu aperitivo predileto. Kir Royal, senhor? Não temos, aqui é a terra do vinho. Meu jovem, disse, Kir Royal se faz com champanhe brut. É, senhor, mas desta marca a casa não tem, só nossos espumantes. Chame o maitre, insisti. Veio muito polido: somos todos daqui mesmo e não dominamos bebidas estrangeiras. Poderia ter desistido, optado pelo Moscatel Terranova da carta de vinhos. Vamos até o bar, tenho certeza, faremos um Kir.  No belo recanto espelhado, recheado de copos, garrafas e licores, havia uma de creme de cassis, Noir de Bourgogne, segundo receita de 1751.

É muito simples: em um copo flûte verter 10% de creme de cassis e depois, suave e cuidadosamente, com a taça inclinada, verter 90% do champanhe brut. A mistura vai se dando na medida em que é bebido. Vamos colocar uma cereja na borda ou no fundo do copo, só para efeitos estéticos. O Kir Royal foi conduzido com toda a pompa para a mesa. Um sucesso e, desde então, acompanha-me uma imerecida fama de conhecedor de drinques. Depois do jantar, os apreciadores de vinho continuaram no bar e, após os tabagistas terem conseguido a liberação de um espaço para seus charutos e cachimbos, resolvi recolher-me.

Na manhã seguinte, eram visíveis as sequelas dos excessos etílicos. Alguns partícipes efetivamente não estavam em seu melhor momento. Eu mesmo me percebi divagando. O vinho se presta a pensamentos inusitados, flutuantes. Aqueles que não passam de um cálice, têm algo a esconder, categoria na qual me incluo. Fiquei, então, a harmonizar os vinhos com o perfil dos presentes: Ao que lutava para manter os olhos abertos, aquele tomador de chá da véspera, um vinho fortificado, licoroso, Porto ou Jerez. Aos do chimarrão com pipoca, serviria, sem qualquer manifestação de preconceito, um vinho da colônia de garrafão. Aos doutrinadores processualistas, um tinto precioso, pouco tânico, mas com muitas possibilidades interpretativas, um “DOC”, um vinho de origem controlada, formal, um Château Lafitte ou um Cobus Bramare. Aos penalistas, com destaque aos muito garantistas, os tintos encorpados, concentrados, com lágrimas lentas e grossas, sanguíneas, perfumadas, um Bordeaux ou Barollo. Aos tributaristas, o vinho mais dispendioso, talvez um Brunello de Montalcino. Aos magistrados com tendências a filosofar, vinho branco complexo, seco mas perfumado, riesling ou gewürstraminer, de preferência alemão do Mosel. E por aí fui; dando testemunho de como são grandes e infindáveis as possibilidades do vinho. Se temos sentimentos a evocar ou remorsos a aplacar, se apresenta como remédio ideal. É um dos “paraísos artificiais”, segundo o entendimento de Baudelaire. Para Fernando Pessoa, é “pão para a boca e vinho para a alma”. Esta fuga da reforma judiciária me permitiu sobreviver aos discursos que se sucediam contra ela. Consegui manter o espírito irônico, satisfeito comigo mesmo, o que não é pouco. Na noite de sábado, enquanto jantávamos no restaurante, no salão principal ocorria uma espécie de baile de máscaras. Os partícipes do baile, trajados a rigor, cantavam músicas italianas. O jovem garçon trouxe o meu Kir Royal, quando já estávamos altos nas percepções gustativas de muitos Elos e Dádivas, especialidades locais.

Não se degustava mais, pois degustar é provar com atenção e esta , estava perdida por boa parte do grupo. Indaguei o motivo do baile: Trata-se da Proclamação da República. Achei um tanto estranho, pois não estávamos em novembro. De qualquer modo, com vinho festeja-se qualquer coisa. Nesse momento, um tenor e a soprano ruiva entram no restaurante, seguidos de alguns mascarados. A ruiva cativou a muitos. Viva a República, disse ao aceitar a bebida. O garçon retrucou: Viva a República da Itália.  Ora, festejavam a unificação da Itália! Passou rápida a lembrança do Leopardo de Lampedusa e Visconti. Nada como o vinho para, com paixão e sentimento, exprimir um deslocado mas verdadeiro patriotismo. Os mascarados e a ruiva convidaram ao salão principal. Seguimos inebriados, misturados aos convivas em delírio. Muitos saíram para o jardim.

Lá fora a noite alta, fria e os parreirais…

Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.