“Não, doutor!  Pior não tem!”, disse João Amarílio.  Mulato esguio, pernas longas e tortas de lombo de cavalo, antebraços compridos, finos nos pulsos e vigorosos junto aos cotovelos de golpear potros e tosar ovelhas.  Vinte anos, pouco mais, mas gesto de homem que ganha a vida há muito, sob o sol e a chuva, inverno e verão.  Rosto sereno. “Cara de nego bom”, conforme Raul das Palmas, também mulato, ao recomendá-lo: “Tal cara, tal caráter!”

Carlos Adalberto Kaczynski Capoani sentiu que a conversa não seria simples.  Desinquieto, o potro se assustava por qualquer coisa havida ou não; alguém que se aproximasse, uma ave brusca que voasse, o corpo tremia em prontidão; as orelhas alternavam cuidado pra diante, pros lados, pra trás; a boca, estranhando o tento, se abria, torcia, espichava; os olhos imitavam as orelhas; e, a cada instante, decidido, iniciava uma caminhada imediatamente interrompida pela mão tranquila do cavaleiro.  João Amarílio, meio inclinado nos arreios, apoiado na perna direita e debruçado sobre ela, mascava uma folha de pitangueira desocupado daquela sofreguidão.

“Apeie, seu João Amarílio.  O senhor toma um mate?”  A sistemática era a do capataz Antônio Costa: quem trabalha se trata por seu e senhor; idade não importa.

“Vou desencilhar.  Permiso.” Um trote frouxo e incerto de potro com poucos galopes o levou até o galpão, cem metros abaixo.  Em dez minutos, a pé, sem esporas e tirador, rosto, mãos, antebraços e o potro lavados, estava de volta.  Embaixo do cinamomo, doutor Adalberto e Don Perico viviam histórias recentes e revisitavam antigas, enriquecendo e agravando.  Acocorou-se ao lado do mochinho.

Vieram o tempo, o gado, o pasto, um cavalo mouro de um vizinho, muito bom (o cavalo), que Amarílio havia domado (“Não deu trabalho, não, senhor.  Teve vontade de ser bom por si mesmo desde o princípio.”), Don Perico contou de uma tropa num verão muito seco, a propósito do tal vizinho que negara aguada e pouso.  Por fim, casualmente retornaram aos potros, como se recém não tivessem falado deles.

Um por um: “O tostado tá bem desenvolvido, esbarra bem, vira pros dois lados, insinua uma marcha-troteada, vai ser bom de pata.  O mouro é mais por cima, um pouco desinsofrido, mas bem sujeito já por diante, esbarra um pouco com as mãos, nega um pouco pro lado de laçar, mas é mais uns galopes e um pouco de lida,  vai ter um tranco comprido, muita pata, e, representa, um trote macio.  O tordilho é meio ronceiro, mas correto, parece meio cavalo feito, tem que tocar, mas, convidado, responde, é um cavalo mais reduzido, andadura curta, trote miúdo, mas não há de ser muito duro.”

Distraído da repetição, Adalberto não atentou pro erro que espreitava.  “Então, o pior deles é o tordilho mesmo, né?”

Mesmo trajeto, mesmo fracasso.  João Amarílio novamente recusou, estranhando.  “Não, doutor!  Pior não tem!”

Adalberto morava e trabalhava na cidade.  Comprara aquela estância havia já uns bons anos.  Gostava dos fins de semana, dos verões, das gauchadas e das histórias.  E dos cavalos.  Serviu um mate e entregou a João Amarílio.  Paciencioso e diversionista, disse a Don Perico.  “Os capinchos tão batendo na lavoura de milho.  Param entre o rio e a lagoa moura.”  Don Perico fez cara de quem procurava o lugar.  “Aquela lagoa funda no correr do rio, escondida no mato, onde uma vez …”  Don Perico gostou da ideia implícita.  Para João Amarílio.  “Peça pro seu Antônio deixar dois cavalos aqui pra nós.”

Retornando ao tema, em estratégia tergiversativa.  “Pros seus arreios, qual o senhor escolheria, seu Amarílio?”  “Ah, o mouro!”  Disse e voltou.  “Quer dizer, depende.  O senhor diz pra passear ou pro serviço de campo?”  “Pro serviço de campo.”  “É.  Acho que o mouro mesmo assim.  Talvez o tostado.”

Adalberto respirou satisfeito.  Desde antes do primeiro galope já sabia que o tordilho seria pior que os outros.  Se orgulhava da própria percepção.  O regozijo estimulou a generosidade.  “Quando estiverem prontos o senhor pode pegar o mouro pros seus arreios.”  João Amarílio agradeceu.

Adalberto serviu um mate e alcançou pra Don Perico. “Se o tostado der marchador vou pegar pros meus arreios.”  Introverteu-se no conforto da lembrança.  Desde o começo dissera que o tordilho seria o pior.  Distraído e feliz, deixou escapar o comentário compulsivo que tanto o satisfazia.  “Eu sabia que o tordilho seria o pior.”

João Amarílio, contidamente ofendido, levantou-se.  “Não, doutor!  Como eu lhe disse: pior não tem!”

O doutor sorriu e concordou.  “Claro, claro!  Compreendo!”

(Não compreendia.  Não era um mero equívoco de linguagem nem um uso restritivo ou pitoresco da palavra.  Era uma proposição deslocada do seu hábitat, uma abordagem desonrosa.  Na ética do domador, do trabalho em que era especialista, o ruim não cabia.  E pior era ruim.  Comparar não o melhorava.  Não operava em comparações, mas no absoluto.  Era uma condenatória.  Era a reprovação ao cavalo, e ao homem.)

Aquelas domas terminaram.  João Amarílio recusou outras.  “O pulso aberto”, justificou.  Continuou no serviço de campo por uns dias.  Uma madrugada, quando o escorpião se definiu no céu, o vulto já cruzara o rio e se embrenhava nos matos, por trilhas de fundos de campo e fundões de cerros.  Os primeiros raios contornaram a silhueta, cavalo e cavaleiro, a trote largo no abandonado leito antigo da estrada real, sobre o coxilhão alto, perto do quilombo, de onde a vista alcança toda a serrania e, adiante, o longe plano.  Duas léguas já o separavam da estância.  A sombra se projetava nas macegas, se acercando e fugindo ao acaso irregular do relevo; frente a um anteparo, casebre, barranco, cerro ou mato fechado, homem e cavalo se reconstituíam na sombra; no descampado, se estendiam tão livres que pareciam tocar o infinito.  Montava à maneira sulina: estrivos compridos, pernas mal e mal flexionadas, corpo atirado pra trás, um pouco encurvado.

 

Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.