Abro a janela do apartamento e a admiro, luminosa. A evidência definitiva de que, mesmo com a pandemia e com todos os percalços da vida, nós sempre teremos Paris.

Apesar de meu endereço no coração da Boulevard Saint-Germain, com vista para a Torre Eiffel, não sou exatamente o que se pode chamar de um homem rico. Muito menos alguém que não tenha preocupações com o futuro, o que também costumam dizer. Admito que sou um sujeito que vive bem – em alguns dias, maravilhosamente bem – e que pode se dar ao luxo de passar largos períodos sem pensar no porvir.

Claro que o dinheiro é importante. Não é ele uma espécie de sexto sentido, que nos permite desfrutar melhor dos outros cinco? Por outro lado, pensar demais em dinheiro é coisa de pobre, de avaro ou de quem trabalha demais, a ponto de só vê-lo na televisão, ou pior, em maletas alheias.

Obtive o padrão de vida atual ainda nos anos noventa. Na finada Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, para ser mais exato. Fortunas trocaram de dono dentro do Programa de Privatizações, e eu lamento não ter chegado mais cedo para abocanhar um naco maior. Apesar das migalhas que me tocaram terem impulsionado minha carreira, e garantido o meu primeiro Jaguar (sutiã é para qualquer um, o primeiro Jaguar sim, você nunca esquece), sempre dei duro no mercado financeiro. Ainda hoje, invisto em ações. E, cá entre nós, mantenho uma pequena corretora informal, administrando fundos de private equity de amigos. Investimentos globais, da City à Hong-Kong, de Wall Street a Tóquio.

Funciona assim: você pega cinco milhões aqui, outros dez acolá, prospecta o mercado e investe. O grupo é escolhido a dedo, é imprescindível um certo desprendimento, já que nada é documentado. Trata-se, digamos assim, de recursos não contabilizados das empresas, valores em trânsito neste nosso Mercado dinâmico e global. Ou, como se dizia na minha infância, nesse mundão velho sem porteiras.

Apesar de tudo, dou um atendimento personalizado a cada investidor. Nada de funcionários, prédio, papelada. O grupo é pequeno, a confiança quase irrestrita. Reproduzo em pequena escala a Bolsa do Rio tal qual a conhecíamos, do olho no olho e das promessas ao telefone. Uma Bolsa que não existe mais. 

 Mantenho ainda alguma nostalgia daquela época, reconheço, mas são tempos findos. O mercado de ações não era a arena de hoje, com milhares de mártires aguardando o assalto dos gladiadores, mas um ringue diminuto, onde o que valia era o tapinha nas costas, a informação exclusiva, às vezes algo mais… Havia menos dinheiro, menos incautos, mas muito mais glamour. Você conhecia o corretor pessoalmente, e sabia como contatá-lo na hora exata, mesmo sem internet ou celular.

Hoje, ao menos se pode viajar. Ou ao menos se podia, antes da Covid. Costumava acessar o mercado no teclado do meu laptop, em frente à piscina de minha suíte favorita em Saint-Tropez, dentre outros lugares em que sou habitué.  Na verdade, vou ao exterior de dez a doze vezes por ano, com a namorada da ocasião, e nestas viagens românticas procuro relaxar um pouco também. Ainda assim, não deixo de ser pragmático: se ela contar com menos de trinta e cinco anos, pago passagem e estadia; se já tiver ultrapassado a idade que Balzac soube descrever tão bem, presume-se que já tenha alcançado um sucesso financeiro tal que permita o custeio de suas despesas, e aí dividimos a conta (e se ela tiver a minha idade? – você deve estar se perguntando… admito que esta hipótese não existe, não saio com mulheres da minha idade).

Penso que este critério é sábio. Elas me brindam com a sua beleza e frescor, ou ainda com as intermédias virtudes que Balzac captou com tanta maestria, e eu lhes forneço não só uma experiência sofisticada, mas também meu savoir vivre. O mundo não é feito de intercâmbios? Eis aí uma troca justa.

Mas não é de aventuras amorosas que eu quero falar. Muito menos de investimentos.   

Minhas três ultimas férias foram esplendorosas: em 2017, aluguei uma Ferrari e passei alguns dias na Toscana, entre vinhedos e girassóis; em 2018 hospedei-me numa ilha privada do arquipélago das Grenadines;e em 2019 – ah, dois mil e dezenove!  – passei duas semanas na suíte do Mandarin Oriental de Genebra com uma amiga muito estimada – ela havia vendido uma cobertura na Vieira Souto e insistiu em retribuir os dias em que velejamos na Côte d’Azur, durante a crise da subprime.

As minhas férias de 2020, bom, as minhas férias de 2020 foram, circunstancialmente, no Rio de Janeiro. Tinha tudo para ser uma estadia nostálgica, sentimental, na cidade em que fiz Economia na UFRJ e aprendi meu ofício, e mais do que isso, o refrão que não canso de repetir em nosso meio: malandro é malandro, mané é mané. 

Tinha tudo para ser, mas não foi.

Sou homem de poucas certezas, mas uma coisa decidi: Nunca mais passo minhas férias no Brasil.

Aconteceu assim: em inícios de 2020, você se lembra, o mercado acionário nos Estados Unidos explodiu. Foi efeito do vírus chinês, essa bomba-relógio que Pequim jogou no nosso colo. O mercado ficou tão volátil que cancelei minha viagem ao Nepal e permaneci em Paris, acompanhando de perto os acontecimentos e falando de quinze em quinze minutos com os dealers e insiders que fazem a diferença – a informação que circula na Internet é para consumo das massas, todo mundo sabe. Precisei tirar uns dias em meados de março para lidar com clientes brasileiros, e acabei pegando um jatinho para o Rio: alguns clientes importantes exigiam a minha presença.

Quando consegui acalmá-los, a Europa já tinha fechado pela covid. Enquanto cacifava um voo privado para me trazer de volta, passei a frequentar aquela parte que realmente importa da orla, o circuito Leblon-Barra. Circulava em uma SUV blindada entre os restaurantes e as casas dos meus amigos, e fui a duas ou três peças, antes dos teatros cerrarem as portas.

Esquecera-me como é custoso se deslocar no Rio de Janeiro. Seja na Lagoa ou em Belford Roxo, é muito desagradável a visão de toda aquela pobreza, do povaréu perambulando pelas ruas, daquele casario quase despencando nas encostas. Se eu pudesse, não olharia para a frente ou para os lados, só para cima. O cume do Corcovado, do Pão de Açúcar, o topo da pedra da Gávea… eu sempre gostei de olhar para o topo.

Bem ou mal, eu estava melhor do que na Itália: um cliente de Milão foi da tosse ao túmulo em quatro dias. E em Manhattan, as UTI’s lotavam. Liguei para um médico amigo e ele me garantiu uma vaga no Sírio-Libanês, em qualquer circunstância. Resolvi ficar mais uma semana.

Foram alguns dias prosaicos, nesse exílio carioca, mas nem por isso desagradáveis. Hospedar-se no Copa sempre é divertido, apesar da decadência do bairro que o abriga. Aquela piscina é antológica.  

Muni-me de máscara e álcool em gel e correu tudo bem até o último sábado de março, antevéspera do meu retorno. Justamente o dia em que inventei de conhecer uma pâtisserrie nas imediações da rua Dias Ferreira – disseram-me que ali havia madeleines que fariam bonito nas páginas do Em Busca do Tempo Perdido. Tomei um táxi no hotel – no Copa há sempre veículos aceitáveis à disposição – e desci bem em frente ao estabelecimento.

Era uma tarde gris, de vento forte e nuvens baixas que filtravam os raios de sol. Examinei a fachada: na verdade, de pâtisserrie aquele estabelecimento só possuía o nome pretensioso – Au Printemps Leblon. Não passava de uma confeitaria ajeitadinha, quase uma padaria de bairro. A luz rosácea da vitrine repleta de doces, com seus spots e neons, contrastava com a claridade difusa lá fora, projetando a imagem de todas aquelas guloseimas na poça que se acumulara rente à calçada, desde a chuva do meio-dia. 

Algumas vezes, o efeito da luz sobre a água forma imagens interessantes: já vi coqueiros flutuando sobre o azul translúcido da ilha de St. Barth, cascos duplicados dos saveiros em Le Verdon-sur-mer, e uma das minhas fotos favoritas é justamente o reflexo dos picos nevados sobre o lago Morraine, obtida em uma temporada nas Rocky Mountains canadenses.   Naquela tarde, a claridade defletida espalhava os doces da vitrine no asfalto junto ao meio-fio, com suas cores brilhantes.

Estava ainda parado em frente ao vidro, admirando o insólito efeito ótico, quando me cutucaram o braço. Era um pivete daqueles que se vê na televisão, com camiseta rota e cabelo carapinha. Acho que era meio lelé da cuca, ria feito uma hiena, arreganhando-me a boca amarela.

Havia esquecido que no Brasil não se pode andar pelas ruas. Joguei ao chão o troco do táxi, e enquanto ele catava as moedas apressei-me a entrar na confeitaria.

Bastou um olhar para eu ter certeza de  que o lugar não era nada do que imaginara. Paredes sujas e mobília ordinária. Recusei o cardápio, pedindo meia dúzia de madeleines e uma xícara de chá. Enquanto aguardava na mesa junto à janela, examinei melhor o ambiente: havia um espelho com moldura dourada na parede atrás do balcão, um relógio cuco que já conhecera tempos melhores, e a imitação de um Sirdjan persa jogado sobre o tabuão gasto e carcomido pelos cupins. Os fregueses eram senhoras de classe média e dois casais jovens ostentando com empáfia grifes que se adquirem em qualquer outlet de Miami.   Quando o prato foi servido, mais uma decepção: as madeleines tão recomendadas não passavam de bolinhos insossos, misto de manteiga rançosa e farinha de má qualidade.

Desviei o olhar do rosto compungido do garçom, que balançava a cabeça como que se desculpando da inépcia do confeiteiro, e busquei no horizonte o contorno distante do Morro Dois Irmãos. Por alguns instantes, fixei-me nos retratos de Proust, Sartre e Gide alinhados nas colunas à esquerda. Na última delas, havia uma imagem colorida de Simone de Beauvoir, captada em um instante de rara beleza. Um pouco de bom gosto, afinal.

Quando quis retomar a paisagem lá fora, o que vi foram as unhas enegrecidas do pivete, que crispava as mãos contra o vidro e balbuciava palavras desconexas. Junto à minha mesa, praticamente ao meu lado! O que vi foram dois olhos grandes, olhos cinzentos e famintos.

O pior é que eu já tinha visto olhos como aqueles, antes. E por mais de uma vez.

 Ainda que queiramos negar, todos trazemos na alma as ruínas de uma Combray singular, envolta nas névoas do passado: aqueles olhos não eram só o céu do Leblon naquela tarde, eram também o cinza plúmbeo das tardes chuvosas no pampa empobrecido de minha infância, quando a família se acotovelava na tábua comprida que fazíamos de mesa. Eram os olhos cinzentos da minha irmã Francisca, perscrutando o caneco com os dois dedos de leite condensado, sobras do banquete na estância dos proprietários.

E minha mãe? Também balançava a cabeça, resignada: dois brigadeiros para cinco irmãos.

Afastei o prato, enojado, e enxuguei o rosto com o guardanapo. O pivete continuava ali, rente à vidraça, o olhar fixo em mim, acusador. Não havia condescendência naquele olhar: eu já fora julgado, eu estava condenado.

Malditas madeleines! – ordenei que trouxessem a conta. Sorvi o chá com uma raiva contida, mas ao pousar a xícara no pires notei que ele não estava mais junto à vidraça.

Ao sair, fui encontrá-lo um pouco além, sentado na sarjeta, as mãos em concha junto à água empoçada, ao lado da imagem feérica da vitrine refletida. Horrorizado, percebi que escolhia um a um os doces – a projeção aquosa de quindins, camafeus e papos-de-anjo – levando à boca o líquido viscoso e escuro. Deglutia com voracidade, como se houvesse ali substância e sabor, como se existissem ali pequenos milagres. Deglutia e me encarava.

Então, eu fugi. Fugi tão rápido quanto os suecos em Bali, no grande tsumani de 2003. Tão apavorado como os corretores da Bolsa de NY no onze de setembro, disparando pela Greenwich Street coberta de entulho e suicidas despedaçados. Em instantes, corri até a parada e me atirei dentro de um daqueles táxis populares. E o que via enquanto voltava para o hotel, a cabeça explodindo pelo volume ensurdecedor do funk que o chofer insistia em escutar? Pivetes ranhentos e ameaçadores. Sujos, ensandecidos, esfomeados. Dezenas, centenas deles.

Não é preciso dizer que não saí mais do quarto. E que antecipei meu retorno para o dia seguinte.

Eu nunca mais volto ao Rio.   

Voz: Marcel Citro de Azevedo
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