Meus primeiros contatos com a obra cinematográfica de Federico Fellini foram frustrantes. Até o dia em que me deparei com um ensaio de Gilda de Mello e Souza. Assisti ‘com ela’ 8 ½, e só assim comecei a compreender o mestre italiano. Ou achar que o compreendia. Não importa. Valeram as formidáveis janelas que a Professora Gilda me abriu.

Coincidência ou não, a antipatia que mantinha com o conceito de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, decerto por não conhecê-lo, foi fabulosamente revertida por um escrito do esposo de Gilda, um simpático senhor chamado Antonio Candido. Trabalho esse que, a partir de determinada edição de “Raízes do Brasil”, passou a ser indissociável dessa obra seminal.

Já havia lido alguns escritos do Professor Antonio Candido. De redação escorreita, fraseado profundo, vocabulário variado sem ser pedante, toda sua erudição verte das leituras saborosas dos seus textos. Se não pelo interesse científico – literatura, sociologia, etnologia, história –, o mero deleite torna obrigatório esse contato.

É possível que Antonio Cândido fosse o último representante de uma geração de intelectuais que ‘interpretaram’ o Brasil com profundidade e de maneira inovadora. Foi companheiro de Florestan Fernandes e próximo do próprio Sergio. E embora sua obra seja predominantemente voltada à literatura, em especial à brasileira, de que é exemplo a monumental “História da Literatura Brasileira”, outros trabalhos seus são dedicados a compreender esse nosso paradoxal país.

“Parceiros do Rio Bonito” é um mergulho excepcional num contexto histórico revelador da passagem do mundo rural para o urbano, mas não sobre os possíveis progressos que esse movimento representaria dentro de uma suposta idéia civilizatória, mas dos extravios culturais decorrentes dessa transformação demográfica. Ali onde a maioria enxergava evolução, Antonio Candido antevia desaparecimento, ao constatar sutilezas perniciosas que somente os homens de gênio conseguem observar.

No triste 12 de maio do corrente ano, Antonio Candido nos deixou, do alto de seus noventa e oito anos. Como fará falta, o Professor! Assim mesmo, Professor com maiúscula, como maiúsculo é o seu legado. Como fará falta o Professor nessa contemporaneidade pródiga em condenações irrefletidas, em especial no desvirtuado espaço em que se transformaram as redes sociais. Como fará falta o Professor para uma sociedade polarizada que insiste em ‘certezas’ precipitadas, nada mais que produtos do preconceito, da intolerância e do receio ou da preguiça em discutir idéias.

Pelo que soube, as cinzas do Professor Antonio Candido, segundo seu desejo, serão misturadas às de Gilda, para depois serem espalhadas num jardim. Que descansem em paz. O que minimamente conforta quem lamenta essa inestimável perda, é que não mereceriam viver a mediocridade dos dias que seguem.

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