Ficha Técnica:
Título: Martinho Lutero, Um destino.
Autor: Lucien Febvre (1876/1956).
Tradução: Dorothee de Bruchard.
Editora: Três Estrelas, São Paulo, 2011.
Título Original: Martin Luther, un destin 1928.
Um clássico da historiografia. Um dos fundadores do “Annales d’Histoire”, movimento que reordenou a pesquisa histórica na França, autor de referência.

Ficha Técnica:

Título: “De Luder a Lutero, uma biografia” Autor: Martin Norberto Dreher, Doutor em História pela Universidade de Munique, Pastor da Igreja Luterana, Teólogo.
Editora Sinodal, São Leopoldo, 2014. Resultado de longos anos de pesquisa, descrição primorosa, sem ser laudatório, escreve com rigor e admiração, desvenda detalhes interessantes
Otto Maria Carpeaux na História da Literatura Alemã, não sem antes pedir perdão a Göthe, afirma ter sido Lutero a personalidade mais influente da literatura alemã. O maior tradutor da Bíblia de todos os tempos lapidou a língua alemã moderna, bem como a própria nacionalidade.
Está na mesma posição de Cervantes e Camões, para os seus universos lingüísticos e construção de nacionalidades.

O INÍCIO DO MOVIMENTO

Na manhã do dia 31 de outubro de 1517, uma quarta-feira, véspera do Dia de Todos os Santos, outono em Wittenberg (hoje Lutherstadt Wittenberg), ao toque do Ângelus do meio dia, o monge agostiniano afixou na imponente porta da Igreja do Castelo, as suas 95 teses em linguagem douta, tratando de questões teológicas. O ato, comum para divulgar opiniões a serem discutidas, não gerou resposta pública imediata, mas marca o início da Reforma Protestante. Em seu lento desenrolar produziu episódios sangrentos e transformações na sociedade européia. Embora não haja unanimidade, determinou o fim da Idade Média, foi o precursor do Iluminismo. Período rico na história. Nicolau Copérnico (1473/1543) colocou o Sol no centro do sistema. Gutemberg (1398/1468) inventou a prensa móvel em 1439 e revolucionou a produção de livros e a disseminação do conhecimento. Albrecht Dürer (1471/1528) retratou a si e aos comuns do povo com toques realísticos, introduzindo a representação pictórica em três dimensões. A Casa Bancária Fugger financiava a eleição de papas e príncipes, um financiamento privado do sistema religioso e político.

Fabvre e Dreher apresentam uma visão do espírito da época, “Zeitgeist”. Percorrem a história de vida do estudante e depois, monge agostiniano, professor e doutor. Foi um homem de contrastes, não pretendia fundar uma igreja, uma nova religião. Queria, sim, apenas corrigir os abusos que floresciam insolentes sob o céu de Roma, especialmente o comércio de indulgências. Uma peregrinação feita em 1510, a pé, o levou à Roma dos Borgias. Observou a miséria moral reinante, a decadência da vida cristã, e do ensino. Fabvre traça um Lutero muito plausível, jovem, depois amadurecido e ao final da vida, exaurido “retraído em si”. Dreher revela detalhes da vida do religioso, desconhecidos por mim, embora tenha vivido toda a infância e adolescência em lar luterano. O título “De Luder a Lutero” foi muito feliz, assinala a transformação produzida no íntimo de Lutero. Não idealiza Lutero, retrata um homem com virtudes e defeitos, e em alguns pontos, contraditório. É uma grande contribuição para conhecer o homem e o seu legado para o Cristianismo.

A trajetória de vida de Lutero se desenrolou em uma “época entre épocas”. A religiosidade, o temor de guerras, pestes e mortes violentas eram onipresentes na vida cotidiana. Dürer imortalizou brilhantemente o espírito da época na gravura “O Cavaleiro, a Morte e o Diabo”, inspirado no Salmo 23, “ainda que eu ande pelo vale da sombra da Morte, não temerei mal algum”. Neste caminhar, os historiadores nos oferecem um painel sobre as correntes teológicas, os pensadores, certamente lidos e considerados no desenvolvimento intelectual do monge, com Santo Agostinho, patrono de sua ordem, Jan Hus, Erasmo, Ockham, Mestre Eckardt. A Igreja Romana abdicou de fazer um debate consistente, preferindo entender que, se condenava as indulgências, condenava o Papa.

ASPECTOS SURPREENDENTES

Lutero teve intensa devoção à Maria. Durante o exílio (ou seria prisão) na Wartburg, realizou a intepretação do cântico de Maria, o “Magnificat”. Em seus escritos e reflexões, redescobre uma imagem profundamente evangélica da mãe de Cristo. O canto de Maria seria um exemplo do agir de Deus na História.

 Em Erfurt, Turíngia, enquanto freqüentou por quatro anos a Faculdade dos Artistas, hoje filosofia, teve pela primeira vez em mãos, uma bíblia. Por aí se pode aquilatar a importância de Gutemberg.

AS TESES DE LUTERO

As propostas de Lutero foram muito além de condenar a venda de indulgências. Postulou eliminar a excomunhão, os interditos, os muitos feriados (só serviriam para Roma arrecadar dinheiro), contra a corrupção e vida dissoluta de altas autoridades eclesiásticas, o fim da guerra contra os boêmios. Batalhou pela reforma universitária. Incentivou o estudo pelas meninas e mulheres. No ponto está na frente dos humanistas. Ele valorizava a instrução feminina e na falta de homens as mulheres poderiam pregar. Atacou a doutrina dos sete sacramentos, só admitia três. Questionou toda a estrutura eclesial baseada na administração dos sacramentos por sacerdotes ordenados. Durante a missa, a participação direta do crente, não basta a mera presença. Abala todos os ritos que haviam se desenvolvido ao longo de mais de um século. Antecipou a laicidade ao dizer que os poderes temporais não poderiam mais ser submetidos ao Papa. Contribuiu para mudar a Europa no aspecto político. Os príncipes apreciaram as idéias.

ROMPIMENTO FORMAL COM A IGREJA ROMANA

Rompeu com Roma ao queimar no Portão de Elster, rodeado de alunos, a bula papal Exsurge Domine de Leão X em 1520, ocasião em que também lançou à fogueira livros de Direito Canônico.

Não houve retratação, e o Papa expediu a bula Decet Romanum Pontificem, em 03 de janeiro de 1521, consumando a excomunhão perpétua. O documento, só recentemente foi exposto pelo Vaticano. A Bula sofreu incontáveis dificuldades para ser divulgada e conhecida. Os príncipes alemães não tinham urgência. É realmente surpreendente ter escapado à fogueira por heresia.

DE LUDER A LUTERO

Os historiadores evocam uma cena importante, o momento em que Lutero comparece frente ao imperador Carlos V, ocasião em que se diz um “homem livre”. “Não posso agir de outro modo, pois sou livre”. Segundo Dreher, ninguém tinha se comportado assim. As reflexões de Lutero se fundaram na idéia cristã de liberdade espiritual expostas nas cartas de São Paulo, “o justo viverá pela fé”. A idéia passa a ganhar sentido e concretude. Trata-se da liberdade espiritual. Neste momento, Luder se torna Lutero. A descoberta da liberdade cristã, em fontes gregas não canônicas, a “eleutheria”, o impressionou profundamente, a ponto de alterar a grafia do seu nome de família, de “Luder” para “Luther” (Eleutherius).

Excomungado, o príncipe eleitor da Saxônia não cumpriu a sentença papal. O povo estava ao lado de Lutero, o que recomendava extrema cautela por parte dos governantes.

REVOLTA DOS CAMPONESES

Embora criticasse a cobrança de impostos, lamentasse a situação dos burgueses e camponeses, não apoiou a revolta camponesa. Neste ponto, foi extremamente conservador. Entendia que devia existir a autoridade com poder e competência para a vida exterior, não para almas e consciências que eram livres. Lutero foi um reformador religioso, não contestando as autoridades seculares constituídas. Foi o mais católico dos reformadores (comparado a Calvino e Swinglio), patriarcal e monarquista (comparações feitas por Dreher). Permaneceu firme na autonomia do político, da autoridade dos príncipes o que o fez perder muito do apoio popular.

A MARSEILLAISE RELIGIOSA

Em 1524, foi publicado o primeiro hinário protestante. Lutero deu ênfase ao canto coral e às cantatas, compôs vários hinos. O mais divulgado, “Ein Feste Burg Ist Unser Gott” (Castelo Forte é o nosso Deus), conhecido como a Marseillaise religiosa. Obteve grande notoriedade com Bach, luterano militante, que ofereceu uma versão suntuosa (confira a interpretação pelo Berlin-Mitte Choral, no Deutscher Dom Berlin, Catedral Luterana). “Existe grande controvérsia sobre a autoria de muitos hinos sacros que teriam sido reelaborados por Bach, como “Jesu meine freude, motet bwv 227”, “Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, bwv 177” (o lindo “soli deo Glória”), e com versão com Barbra Streisand, Dank sei Dir, Herr, reelaborado por Händel.

Segundo Dreher, Lutero, voz impotente de barítono, caminhava pela sala com a flauta transversa, e o regente Johann Walter e o instrumentista Conrad Rupff, à sua frente papel pautado e pena. Os conflitos religiosos foram particularmente sangrentos e persistentes, culminando com a Noite de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572), em que os católicos massacraram os huguenotes na França. Alexandre Dumas retrata a época em “Os Três Mosqueteiros”, que resultou em inúmeras versões: o premiado “Rainha Margot” (católica) obrigada pela mãe, Catarina de Médici, a casar com Henrique de Navarra (protestante), para selar a paz, tentativa frustrada, um banho de sangue.

LUTERO E O DIABO

Insistente na idéia de combater o Diabo. Custo a entender, mas era o espírito medieval, o Diabo era o mal e ele reconhece que existe o mal, a banalidade do mal, idéia desenvolvida 450 anos depois, por Hannah Arendt.

Lutero morreu entristecido, exaurido, “recolhido em si”. O movimento reformista foi apropriado pelos príncipes alemães, não propriamente por motivos religiosos, mas por razões de Estado.

O CASAMENTO

Lutero teve uma mulher admirável, muito à frente do seu tempo. Catarina Von Bora, ex-freira, deixada pelo pai em um convento aos cinco anos (veja-se “A Primeira-Dama da Reforma”, de Ruth A. Tucker, Ed. Thomas Nelson Brasil, 2017).

Movido por idealismo, foi ingênuo na sua pura fé. Inspirou seguidores, encontrou ou reencontrou as fontes da fé cristã, mas sem ele a Reforma seguiu o seu destino. O Luteranismo é uma concepção de vida, e Lutero é um dos pais do mundo germânico e do espírito alemão. As suas contradições foram usadas pelos nazistas. O que diria hoje Lutero ao constatar as inúmeras vertentes evangélicas, suas virtudes e muitos defeitos? Como Lutero conseguiu escapar da Inquisição? Talvez por ser um rebelde, mas conservador em relação ao poder civil. O sucesso de uma revolta como a ocorrida, depende muito das dinâmicas sociais e suas imprevisibilidades. Havia um clamor por mudanças na Europa Central, vocalizadas por Lutero, com suas idéias difundidas pela imprensa, de forma mais rápida até então. Pelas suas pregações e vida, a humanidade conquistou a liberdade da fé. Hoje católicos e protestantes estão muito próximos e isso é muito bom, é tolerância e compromisso, afinal antes de tudo Lutero deu uma grande contribuição para o cristianismo. Recomendo a leitura de um das biografias, especialmente indicada em período de tanta intolerância e fundamentalismo.

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