Cadê o Social?



O vocábulo social expressa, correntemente, o que é da ou relativo à sociedade, entendida como qualquer agrupamento, agremiação ou comunidade. Porém, especialmente no plano político, possui outra acepção, a de qualificar determinadas ações como destinadas ao atendimento de membros, grupos ou setores que não dispõem dos meios necessários para as mais distintas finalidades. Neste sentido tem-se qualificado de social qualquer medida que procure atender parcelas carentes da população.

Exemplo de medida social é a Lei n. 8.009/90, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família. Originou-se da conversão da Medida Provisória n. 143/90, editada nos estertores do governo do então Presidente José Sarney — aquele do bordão ‘tudo pelo social’, lembram? Disciplina que, salvo algumas hipóteses, nela mesma previstas, a moradia familiar não pode ser alvo de penhora. Seu objetivo primordial, portanto, é o de resguardar pessoas em situação de risco social da eventualidade de permanecerem sem teto.

Se o cidadão deixa de adimplir suas dívidas civis, fiscais, etc. o credor estará autorizado a satisfazer seu crédito com os bens de seu devedor, mediante ato judicial consistente na penhora. Antes da Lei em comento, independentemente dos motivos que levaram à inadimplência, praticamente todos os bens do devedor poderiam ser penhorados, inclusive sua residência, o que o deixava, literalmente, para utilizar uma expressão que neste contexto nada possui de engraçada, na ‘rua da amargura’. Todavia, depois dela, a moradia do devedor, direito fundamental que deveria ser assegurado a todos, em regra, restou intocável.

Entretanto, quando da elaboração das leis, é impossível prever todas as conseqüências que delas poderão advir. Assim, embora suas intenções possam ser as melhores, não estarão livres de apresentar efeitos contrários aos seus propósitos. No caso da Lei n. 8.009/90, consoante referido, sua destinação foi proteger pessoas em situação de risco social. Mais que isso, procurou coibir a prática de atos de má-fé, sendo sábia ao desconsiderar manobras ilícitas como a do devedor que se desfaz de seus bens penhoráveis, destinando o numerário obtido para aquisição de imóvel mais valioso.

Mas e se o sujeito não atuou de má-fé? Vamos supor que determinado cidadão, por uma infelicidade qualquer ou por ingerência de seus negócios, venha a sofrer substancial queda do seu nível financeiro. Sua realidade anterior proporcionara a aquisição de imóvel nababesco que lhe serve de residência. Este bem, se vendido, alcançaria ao nosso hipotético personagem dinheiro suficiente para adquirir habitação mais modesta e ainda quitar todas suas dívidas. Parece razoável exigir-lhe, então, a negociação do imóvel, visto que, dessa forma, além de não ingressar em situação de risco social, restariam protegidos os interesses de seus credores.

Pois aventadas situações como essa, visando aprimorar o instituto, foi inserida no Projeto de Lei n. 51/06 regra com a seguinte redação: “Também pode ser penhorado o imóvel considerado bem de família, se de valor superior a 1000 (mil) salários mínimos, caso em que, apurado o valor em dinheiro, a quantia até aquele limite será entregue ao executado, sob cláusula de impenhorabilidade”.

Imaginemos que nosso personagem fosse proprietário de apartamento avaliado em um milhão de reais — seu único imóvel, utilizado pela família como residência. Configurada sua inadimplência, esse imóvel seria parcialmente penhorado, a partir do valor que ultrapassasse mil salários mínimos. No nosso exemplo, se suas dívidas somassem meio milhão de reais, sobraria metade do valor da avaliação para adquirir outro imóvel que lhe servisse de moradia. Por outro lado, se suas obrigações alcançassem dois milhões de reais, seria penhorado apenas o montante que exacerbasse a reserva legal, que atualmente equivale a trezentos e cinqüenta mil reais. Convenhamos que se trata de quantia suficiente para aquisição de outro bom imóvel.

Ocorre que o Presidente da República, alardeado como legítimo representante das camadas sociais menos privilegiadas, depois das insistentes reclamações públicas do Senador José Sarney — o mesmo do bordão —, vetou o dispositivo inserto na Lei n. 11.382/06 (que implicaria alteração do Código de Processo Civil: parágrafo único do art. 650), por entender que a medida, apesar de razoável, quebraria o dogma da impenhorabilidade absoluta, merecendo maior debate na sociedade. Mas o Congresso, composto de representantes eleitos pelo povo, não a discutiu suficientemente? E dogmas que violem princípios como da razoabilidade não devem ser quebrados?

Podemos pensar, nós que não contraímos dívidas ou não possuímos imóveis de tão alto valor, o que temos a ver com isso? Ora, com o pagamento das obrigações, o dono da vendinha da esquina não precisará dispensar seu único empregado, as instituições financeiras poderão minorar taxas de juros ao não incluírem esse tipo de risco no spread bancário, poderá haver ingresso nos cofres públicos de dinheiro a ser destinado a programas assistenciais, etc. E, principalmente, deixam de ser alcançados injustificáveis benefícios a quem deles não necessita.

Eventualmente haverá alguém que critique a opinião ora externada, sob o argumento de que não devemos tratar desigualmente pessoas com idênticos problemas financeiros, embora pertencentes a classes sociais distintas. Tudo bem, o raciocínio pode até ser factível. No entanto, ninguém poderá negar que o Presidente da República foi incoerente com sua biografia. Pelo menos com aquela sua história pessoal que parece ter se interrompido com a assunção ao cargo de Chefe do Poder Executivo.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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