A Descoberta da Pólvora



O sítio da Ordem dos Advogados do Brasil (www.oab.org.br) noticiou que o secretário-geral do Conselho Federal da instituição e presidente eleito da seccional de Tocantins, Dr. Ercílio Bezerra, apontou, no dia 04 último, que o problema da morosidade também é atribuível ao fato de que os juízes trabalham pouco.

É como se houvesse descoberto a pólvora. Suas conclusões revolucionarão a atividade judicial no país. A partir de então, estão dispensadas as comissões que estudam possíveis alterações nas leis processuais — compostas pelos mais notáveis advogados, magistrados e professores. Ao lixo com os mais variados projetos de aprimoramento da prestação jurisdicional. Suspenda-se a tramitação dos projetos legislativos que têm o objetivo de oferecer subsídios materiais e pessoais para os mais distintos órgãos judiciários. Providenciem-se, apenas, chicotes e livros-ponto. Estará resolvido o problema da morosidade.

Porém, cabe indagar a respeito daqueles julgadores que trabalham em média de dez a doze horas diárias, nos finais de semana, nos recessos forenses, nos feriados, etc. Será preciso aumentar, com relação a estes, a jornada de trabalho? E aqueles que, embora se dirijam aos fóruns ou tribunais somente no turno da tarde, permaneceram trabalhando em suas residências, em bibliotecas, etc. É necessário determinar que trabalhem apenas em seus gabinetes funcionais? E com relação àqueles que conseguem cumprir com suas atribuições em jornada equivalente a um turno. Deverão permanecer na sala de audiências fazendo palavras cruzadas ou jogando videogame? Por conta desses questionamentos, será que a afirmação do Dr. Ercílio está baseada em dados concretos e demonstráveis?

Em primeiro lugar o Dr. Ercílio não está completamente despido de razão. Há sim juízes que trabalham pouco. Assim como em qualquer área profissional. Existem deputados que trabalham pouco, professores que trabalham pouco, empregadas domésticas que trabalham pouco e até advogados que trabalham pouco. Mas a partir dessas constatações é autorizado generalizar, deduzir que se um profissional trabalha pouco, toda sua classe também?

Acredito que não. Bom, então certamente o Dr. Ercílio deve dispor de informações que comprovem sua afirmativa. Presumo que não esteja baseado em alguma experiência profissional ou na reclamação de algum colega. Se assim fosse, estaria generalizando indevidamente, em prejuízo de toda magistratura nacional, em especial daqueles que se dedicam com denodo à atividade.

Todavia a notícia não divulga se o Dr. Ercílio está ou não amparado em dados objetivos. Se estiver, é seu dever patriótico apresentá-los, porque, com base neles, será possível estabelecer diretrizes que corrijam imperfeições do sistema judiciário. Caso contrário, o Dr. Ercílio chutou, e muito feio.

Pois bem. Conheço juízes que trabalham mais de dez horas diárias, inclusive contrariando ordens médicas para reduzir a carga de trabalho. Conheço magistrados que comparecem ao fórum para audiências e atendimento a advogados e partes, mas que decidem e despacham em suas casas porque produzem mais e melhor, mantendo o trabalho sempre em dia apesar da excessiva carga de trabalho. Conheço julgadores que, no fórum ou em casa, trabalham nos finais de semana, nos feriados, no recesso e nas férias. Infelizmente alguns deles não conseguem vencer todo o trabalho. Por outro lado, conheço juízes que trabalham em torno de cinco horas diárias e descansam nos dias dedicados ao repouso. E mantêm seus processos em dia.

Nem por isso estou autorizado a concluir que todos os juízes são assim, mas devo assentir que questões de idiossincrasia, acaso influam na prestação jurisdicional, não podem sustentar a conclusão de que é necessário que os juízes cumpram jornada de oito, dez ou doze horas diárias para resolver o problema da morosidade.

Além disso, a generalização não peca apenas por não observar as diferenças individuais dos juízes, pois também erra ao desconsiderar desigualdades objetivas que interferem no trabalho. A tendência é que uma vara, uma turma ou uma câmara trabalhe melhor se houver número adequado de servidores e computadores, bem como aumente a qualidade e celeridade do julgamento quanto menor o número de processos. Se desconsiderarmos essas particularidades, certamente será falaciosa conclusão pretensamente científica.

E temos de averiguar também o contexto da nossa investigação, visto que a Justiça Estadual difere da Federal, que por sua vez difere da Trabalhista, que se difere da Militar. Porque a prestação jurisdicional no Rio Grande do Sul é diferente da do Amazonas, que é diferente da de Tocantins, que é diferente da de São Paulo, etc. Nenhum quadro é melhor ou pior que o outro, mas há diferenças regionais que certamente interferem no modo de trabalhar. E isso é extremamente relevante para considerações como a do Dr. Ercílio.

Certamente a questão da morosidade deve ser debatida por toda a sociedade, especialmente pelos magistrados, pelos advogados, pelo Ministério Público e outros profissionais ou entidades que atuam diretamente nas Justiças. E todas as sugestões são bem-vindas. A única exigência é que estejam objetivamente articuladas, e não construídas por simplificados ‘achismos’.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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