Haverá Unilateralidade no Contraditório?



O incidente havido entre um atual e um ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, em sessão da Corte do dia 23/11, presta-se a reflexões sobre dois problemas que, lamentavelmente, são corriqueiros na realidade forense. Ambos a prejudicar o princípio constitucional do contraditório em seu viés de ‘paridade de armas’.

O primeiro, mais genérico, refere-se aos limites que devem pautar a relação juiz e advogado. Não raro se observam reclamações a respeito da conduta de magistrados infensos a contatos pessoais com defensores. Será que essas situações decorrem de postura autoritária dos julgadores, ou existe algum fundamento jurídico para tanto? Tentarei demonstrar que há sim motivo razoável para que esses contatos ocorram apenas excepcionalmente, e acredito que minhas conclusões resultarão numa versão lógica de como o sistema deva funcionar, muito mais em benefício dos próprios advogados, do que em proveito de noções corporativas.

Não devemos esquecer que o juiz decide questões que, em regra, pressupõem interesses contrapostos, cada qual representado por um advogado. Esses interesses são transmitidos ao processo de forma que não apenas o julgador deles conheça, mas que especialmente a parte contrária seja cientificada. É assim que se instaura a necessária dialética processual. Cada litigante deduz suas pretensões, sempre de forma a permitir que seu adversário possa opor algum tipo de resistência. A observância desse mecanismo é que efetiva o contraditório. E ínsito a essa mecânica está o preceito da publicidade. O juiz precisa firmar suas convicções com base no material argumentativo e probatório apresentado pelas partes, como forma de objetivar sua decisão, demonstrando à sociedade que não exerceu seu papel constitucional arbitrariamente.

Mas será que essa lógica é observável nas hipóteses em que pretensões e resistências são formuladas ao julgador sem conhecimento da parte contrária, podendo influenciar na formação da convicção do juiz que a externará sem base nos elementos dispostos nos autos? Parece-me que não. É evidente que os interesses opostos àqueles representados pelo advogado que influiu na decisão serão lesados. E o prejuízo terá origem não em eventual tibiez de argumentos ou provas.

Não é demais repisar que ambos os litigantes são representados por advogados. Portanto o desequilíbrio não é apenas entre as partes, mas igualmente de exercício profissional. Não haveria no caso, ainda que de forma reflexa, uma violação à prerrogativa do advogado alijado do contato que seu colega manteve com o juiz?

É claro que, por conta disso, o julgador não deva se isolar. Pelo contrário, é recomendável que, quando necessário, estimule os contatos com as partes. Ou melhor, com ambas as partes. Também há situações em que se revela oportuna comunicação direta com o advogado, sem qualquer prejuízo ao contraditório ou à publicidade. Por exemplo, para a correção de um equívoco material encontrável em medida de natureza urgente. Medidas como essa podem economizar tempo e serviço cartorário, sendo irrelevante manifestação da parte contrária.

O que se deve evitar, enfim, é o que se convencionou denominar de ‘embargos auriculares’, ou seja, aquelas postulações apresentadas diretamente ao juiz, na tentativa de influenciar-lhe a decisão, muito menos pela razoabilidade do pedido, do que por qualquer outro motivo. E aqui ingresso no exame do outro problema inicialmente mencionado.

Como referi, o processo possui natureza dialética. São apresentados ao julgador argumentos e provas que, depois de submetidos ao contraditório, formarão seu entendimento. Todavia outros fatores poderão exercer algum tipo de influência. Um deles é o argumento de autoridade. Implica a idéia de que sua adoção não decorre da validade jurídica da postulação, mas da autoridade que o veicula. Corriqueiramente se traduz no seguinte: contrata-se um ex-Ministro ou um ex-Desembargador, especialmente pelo trânsito que mantém com seus ex-colegas, facilitado que lhe é o acesso aos ‘embargos auriculares’, e não por seus méritos profissionais. Não é a regra, contudo também não é a exceção. Nessa hipótese, haverá efetivo contraditório? O advogado da parte contrária estará atuando em paridade de armas?

A gravidade da situação no incidente ocorrido no Supremo reside no franco acesso que um ex-Presidente da Corte mantinha com um Ministro julgador, o que se infere dos telefonemas que este alegou ter recebido. Ora, um simples pedido de preferência poderia ser veiculado via petição ou em comunicação com o gabinete do magistrado. Não pretendo elaborar qualquer juízo sobre o procedimento de quem quer que seja. A situação apenas ilustra que esses contatos (de primeiro, segundo, terceiro ou quarto graus), ao pé do ouvido, não correspondem aos anseios do Estado Democrático de Direito. Será que todos os advogados podem telefonar para a residência de um Ministro da Suprema Corte? E se o Ministro recusasse atender o telefonema, poderíamos qualificar sua atitude de autoritária?

Afinal, será que os juízes estão tão equivocados quando se negam a receber advogados? As negativas aos pedidos de ‘despachar com o magistrado’ violam ou asseguram princípios constitucionais? Não seria adequado antes de, de dedo em riste, desqualificar os juízes sem perquirir da real motivação que ensejou a negativa de contato direto? Acredito que essa resposta deva ser obtida não apenas junto aos advogados cujos pedidos de ‘audiência unilateral’ forem negados, mas também com seus colegas que representam as partes contrárias.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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