Justiça do mais Forte



Aos filósofos gregos não passou despercebida a questão da justiça. Alguns pré-socráticos, mas especialmente Platão e Aristóteles apresentaram conceitos ou pressupostos a respeito do conceito de justo. Desde então, inúmeras palavras, pela pena ou boca dos mais respeitáveis pensadores, têm sido escritas ou proferidas com o objetivo de dizer o que é justiça. E a controvérsia está longe de terminar.

Na discussão acadêmica parece prevalecer a idéia de certo relativismo acerca da justiça. Ou seja, o conceito de justo varia conforme diferentes concepções morais, teológicas, territoriais, étnicas, culturais, etc. Por isso não há, por exemplo, compatibilidade — ou pelo menos ainda não se conseguiu alcançá-la — entre doutrinas liberais, atualmente muito estudadas em virtude dos escritos de John Rawls, e outras de cunho socialista ou marxista, depreendidas das lições de intelectuais como André-Jean Arnaud.

Embora seja tarefa dificílima, quiçá impossível, a apreensão ou fixação de parâmetros universais para conceituar definitivamente justiça — tarefa essa, não obstante ingente, deve sempre ser estimulada — alguns pensadores afirmam que podemos estabelecer consensos a respeito do que possa ser qualificado como manifestamente injusto. Assim, critérios que estabeleçam desequilíbrios no âmbito das relações humanas podem, em princípio, ser rotulados de injustos. Falo em princípio por que tratamentos desiguais por vezes são justificados em razão da desigualdade havida entre as pessoas. Dispensa-se maior proteção às crianças, em virtude de sua especial condição, do que a homens adultos. Em relação a estes, também são justificados determinados privilégios aos idosos.

Se verdadeiras essas premissas, concluímos, então, que pessoas em idêntica situação, são merecedoras de tratamento idêntico. Mas se não houver tratamento análogo, haverá justiça com relação a um e injustiça com relação a outro? Ou a justiça pressupõe o tratamento idêntico, se não pode ser qualquer coisa, menos justiça? E se entendermos injusto o próprio tratamento dispensado, será justo mesmo assim tratar identicamente essas pessoas?

Saddam Hussein foi condenado à morte por tribunal iraquiano, instituído ou composto após ocupação norte-americana, em razão de genocídio perpetrado contra minorias étnicas e religiosas. Não foram poucos, inclusive alguns homens ilustres, que elogiaram a decisão. Creio que partem do pressuposto de que a justiça se consuma quando é condenado à morte o causador do massacre de milhares de humanos. Acaso estejam corretos — e desde o Tribunal de Nuremberg há plausibilidade para que assim pensemos —, pela tese do tratamento igualitário, deve ser condenado todo responsável por qualquer morticínio. Preconizar a condenação de Saddam Hussein, deixando impune qualquer outro genocida, sob o argumento de que somente o ditador iraquiano, por essa circunstância, deva ser punido, não condiz com o princípio do tratamento igualitário. Tal raciocínio parece absurdo, sendo razoável, pois, mantermos a crença de que a condenação de qualquer genocida é medida de justiça.

Mas ainda não respondemos à indagação sobre se haverá justiça se restarem impunes outros genocidas, embora admitamos que o devam? Penso que, neste caso, se outros não forem punidos por qualquer motivo que fuja a nossa disponibilidade, não estaríamos condenando injustamente Saddam Hussein. O suicídio de Adolf Hitler ou de Hermann Goering impossibilitou que fossem condenados pelo Tribunal de Nuremberg, não sendo argumento suficiente para rotular de injusta as condenações dos demais nazistas processados. Por conseqüência, é injusto condenar Saddam Hussein e, deliberadamente, deixar impunes outros genocidas.

Segundo noticia a própria imprensa norte-americana, muitos colaboradores do governo de George Bush contribuíram para a ascensão de Saddam Hussein ao poder, inclusive possibilitando-lhe o acesso a armas químicas que se prestaram ao massacre de minorias. Não seriam por isso, também, independentemente do grau de participação, responsáveis? E o assassinato de milhares de iraquianos e norte-americanos por conta da sina guerreira do governo Bush, não torna seus dirigentes vinculados a essas mortes? Será que Pinochet merece punição e os integrantes dos governos norte-americanos de então, que participaram avidamente das ditaduras latino-americanas, devem permanecer impunes pela morte de milhares de vítimas das repressões? Os causadores da tragédia humana patrocinada em Hiroshima e Nagasaki diferem-se dos gerentes dos horrendos crimes nazistas? Parece então ser justo punir todo e qualquer responsável por atos de barbarismo contra seres humanos; a correção, adequação ou justeza das penas é outro problema.

É provável que saiamos de qualquer discussão sobre este tema com mais perguntas que respostas, o que não nos impede de concluir que, na prática, estamos ou diante de uma justiça manca, se é que isso seja possível, ou diante de um grande circo, armado por aqueles que, coincidentemente, escapam de punição e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, punem outros pela prática de fatos idênticos. Conceito típico de justiça do mais forte. Será isso, de fato, justiça?
Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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