Que Democracia Desejamos?



Findo o processo eleitoral, é o momento de verificar que tipo de democracia a sociedade brasileira pretende sustentar. Se o atual modelo, meramente formal, para o qual, quando encerrados os pleitos, também termina a participação política de cada cidadão, ou outro modelo, material, integrativo, em constante aprimoramento.

O modelo atual implica admitirmos que o processo democrático encerra-se com as eleições. A partir de então, os eleitos devem prestar contas a seus eleitores, mas não exatamente porque se consideram representantes destes, e sim por que já têm em vista as eleições futuras. E se o eleitor incomodar demais, passa a existir a figura do ‘escolhido’, ou seja, por que eleito, não deve satisfação a ninguém, que não a seus próprios interesses. Naquele estágio, acompanhamos a formação dos currais eleitorais, políticos que, a fim de se manterem no poder, lutam pela concessão de privilégios a determinados grupos de eleitores, em detrimento dos interesses gerais. No outro estágio, nada que uma caprichada produção televisiva não resolva o problema, mesmo porque são poucos os ‘chatos’ que exigem uma atuação mais efetiva dos eleitos.

Pois ao fim e ao cabo, sinto muito dizer isso, por parecer extremamente antipático, mas a culpa não é dos políticos, é da própria sociedade. Aqueles são meros reflexos desta. Essa constatação parece estar surgindo com força. Por isso inicialmente referi que a ocasião é propícia para nossa definição de democracia. A ilusão de que a evolução deste país, nos mais variados aspectos, dependerá de nossos governantes parece ceder espaço à idéia de que os mais substanciais avanços nascem na base da sociedade. Nossa omissão importará apenas na repetição da história, somente trocados os protagonistas e, eventualmente, o enredo. Ou será que alguém, despido de suas ideologias, acredita que os escândalos do ‘mensalão’ ou do ‘dossiê’ são distintos daquele conhecido por ‘compra de votos para emenda da reeleição’, ou dos problemas havidos quando de algumas privatizações? Ou, um pouco além, que sejam diferentes das imoralidades praticadas quando da República instalada na ‘Casa da Dinda’?

Um dos maiores pensadores brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda, numa obra seminal denominada ‘Raízes do Brasil’, erigiu importante conceito, muitas vezes incompreendido: trata-se do ‘homem cordial’. Holanda alinha uma plêiade de motivações históricas, psicológicas e antropológicas acerca da formação da identidade brasileira, e nela localiza nosso descaso com as questões públicas. Nossas relações são pautadas pela relevância do privado, do domínio particular.

Essas considerações apresentam reflexos no cenário jurídico, especialmente no direito penal. O tratamento dispensado aos crimes contra o patrimônio é muito mais rigoroso que alguns crimes praticados contra a coletividade. Não raro nos revoltamos contra o furto de uma bolsa ou o roubo de um estabelecimento bancário. Isso por que nos identificamos com a vítima, afinal poderia ser qualquer um de nós que tivesse a carteira surrupiada ou que estivesse no interior de uma agência bancária no momento do assalto. Todavia o mesmo não ocorre quando tomamos conhecimento de alguma sonegação fiscal ou de um desvio de patrimônio público. Não nos identificamos com o que é público pelo motivo de não nos damos conta que o dinheiro sonegado ou desviado é nosso. Simplesmente pensamos que é do estado — em qualquer de suas variantes conceituais — e por essa razão não nos interessa. No início, até não nos conformamos com esses fatos, mas o tempo passa e eles acabam se tornando folclore, quando não motivo para piadas ou brincadeiras.

Conseqüentemente, acompanhamos pelos noticiários os presídios abarrotados de gente. E há neles algum sonegador ou agente público corrupto? Poucos, muito aquém do desejado. Não quero afirmar, obviamente, que a única solução seja o encarceramento. Longe disso. Apenas penso que seria razoável exigir tratamento, senão mais rigoroso, pelo menos equiparado para ambas espécies de delitos. Acredito que, sob o aspecto social, a sonegação de exorbitantes quantias, que poderiam se prestar à habitação popular, à aquisição de medicamentos para doentes carentes ou mesmo a diminuição da carga tributária, constitua conduta mais reprovável que o furto de cem reais de alguma pessoa.

Essa desarmonia jurídica somente será corrigida quando dispormos da consciência de que a solução normativa hoje em vigência é perniciosa, para então pressionarmos por mudanças a serem implementadas pelos legisladores. Isso exige participação política. E participação política exige discussão da conveniência não apenas do privado, mas também e especialmente do público.

Portanto o melhor é falarmos que o processo político apenas se iniciou. A democracia não se encerra com as eleições, faz-se diuturnamente e por intermédio de todos nós. Somente o conjunto da sociedade brasileira é que construirá uma nação mais justa. A não ser que prefiramos viver na terra do faz-de-conta: a cada nova eleição aguardando a vinda do ‘salvador’.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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