Afastou as cobertas e jogou as pernas magras para fora da cama. Aquela altura a mãe já estava dentro do ônibus e, com sorte, ia sentada, abraçada à sacola estufada de panos enfeitados de crochê.  Procurou com os pés os chinelos embaixo da cama e foi à cozinha. Na lata de alumínio só havia farelos dos biscoitos de polvilho. Misturou um pó cor de rosa na água e bebeu-o quase num só gole. Ainda preferia o suco de morango de envelope ao café aguado que estava sobre a mesa. Bom mesmo seria o shake e o pão de queijo da lanchonete em frente à escola, mas este gosto estava proibido, um prazer que custaria  a venda de seis panos feitos pela mãe como ela dizia para acabar logo com a conversa.

A lembrança do encontro marcado para mais um pouco contraiu seu estômago. Sentiu vontade de voltar a dormir, mas o fato é que não podia desperdiçar o feriado escolar.  Hoje ninguém viria encher os ouvidos da mãe com conversas de que ele não fora à aula, e sabe Deus mais o quê, provocando aquela fieira de xingamentos arrematada com a ameaça de mandá-lo de vez para Mato Grande. Nunca estivera lá, mas sabia que era mais de um dia de viagem, tendo que trocar de ônibus, um lugar de terra vermelha onde o pai vivia cuidando de bois. Jamil disse que era a pior vida para se viver. Tapado de pó, longe do agito da cidadedevia saber. Conhecia muita gente, tinha opinião sobre tudo e fama de valente. Arrumava com facilidade trabalhos que sempre lhe rendiam alguma novidade . Ia comprar agora uma jaqueta de couro, daquelas cheias de rebites prateados. Já tinha serviço acertado. Foi aí que ele perguntou se não lhe arranjava alguma coisa, estava precisando de dinheiro. O Jamil estourou uma gargalhada, a boca grande bem aberta e perguntou o que é que ele sabia fazer com aquela cara de quem ainda brincava com ursinho de pelúcia. Depois ficou olhando longe e falou que ia pensar; mais tarde mandou um bilhete dizendo que no dia de folga do colégio era para aparecer pelas oito horas lá na praça do viaduto.

Um terreno em bico onde se encravavam três bancos velhos e um bebedouro quebrado coberto de musgo era a praça. O lugar seria só abandono não fosse o salgueiro frondoso que desenhava uma sombra larga e compacta sobre o capim crescido. De longe viu Jamil falando no celular. Naquele corpo forte o que mais lhe fascinava era o corte do cabelo: uma faixa estreita que ia do centro da testa até a nuca, com as pontas amarelas, espetadas de gel, e o resto da cabeça raspada. Queria ter o seu igual. Com o dinheiro do serviço iria direto para o salão. Depois que estivesse feito, a mãe poderia esbravejar quanto quisesse, não tinha como voltar atrás. Apressou o passo e sentiu uma agitação estranha no peito. A boca estava seca e a voz saiu diferente quando parou na frente do Jamil e perguntou o que devia fazer.

-Te liga: é o teu teste. Se tu trabalhar direito vai aparecer mais coisa. Se eu não gostar, é a primeira e última. Tá vendo aquele prédio bacana de vidro verde depois da esquina? Pois é de olho na portaria dele que tu vai ficar.  Qualquer movimento de saída no prédio dá um assobio. Tu não tem que cuidar de mais nada. Eu preciso de uma moto para buscar a encomenda de um cliente que paga bem, gente importante. É um empréstimo forçado por umas horas. Ah, e trabalho é sempre de boné, cabeça tapada e a aba escondendo tudo que der do rosto, não te esquece. Coloca este aqui. Sem bobeira. Quando eu sair, pega um rumo e te manda também.

A brevidade da  sua participação desapontava-o.

–  Mas eu não vou contigo?

–  Pra quê? Depois que eu estiver com a moto não tem mais nada para ti.

–  Oh.. Jamil…quanto é que tu acha que vai me pagar pelo serviço…?

– Tá muito apressado, te segura, nem fez nada e já tá falando em dinheiro? Vai trabalhar que esta conversa é pra depois. Primeiro quero ver .

E já foi saindo, sem olhar para trás, balançando os braços e jogando as pernas, numa ginga cheio de si. Era a primeira vez que via o Jamil com aquele abrigo largo de malha escura, parecia ser de outra pessoa, bem maior que ele.

Esfregava as mãos na calça porque suavam muito e podia ouvir as pancadas dentro do seu peito. O Jamil caminhava pela rua oposta à área de estacionamento quando uma moto se aproximou. As ordens recebidas voltaram lhe à lembrança e cravou os olhos na portaria do prédio, mas um zunido forte dentro da cabeça embaralhava sua visão e a cada instante  sobressaltava-se com movimentos imaginários. De repente, aquele baque seco. Desviou o olhar e viu um capacete caído no chão, o Jamil já ao lado do motoqueiro, quase encostando nele, a mão direita no bolso do abrigo, pressionando o outro a descer da moto. A cena prendeu sua atenção. Só voltou a olhar para a porta quando ouviu vozes. O vigia saíra do prédio e dirigia-se ao estacionamento, logo atrás vinha outro homem. Lembrou do combinado, mas os músculos da sua face não obedeciam e os dentes começaram a bater uns contra os outros de forma incontrolável. Saiu correndo em direção ao Jamil que se virou bruscamente, os olhos cintilando, a onça prestes a saltar, mas não houve tempo para qualquer coisa, porque junto com o súbito estampido viu Jamil se curvar com a mão na barriga, o corpo se afrouxando até encontrar o chão onde se foi abrindo uma mancha escura.

Na correria que se seguiu, alguém segurou com força seu braço e falou em conselho tutelar. Já tinha ouvido isto da boca da diretora, não devia ser coisa boa. Tremia como se o estivessem sacudindo e não conseguia tirar os olhos do Jamil, inerte no chão, parecia um boneco de cera, o olhar estático, igual ao dos peixes que a mãe trazia da sobra da feira e que ele ajudava a limpar, tirando as vísceras e empurrando os olhos para fora da cabeça que saíam inteiros e viravam duas bolas de vidro na sua mão. A mãe mandava apressar com o serviço senão as moscas iriam tomar conta atraídas pelo cheiro e pelo sangue. Taparam em seguida a cabeça do Jamil, de certo para afastar  varejeiras.

Embarcou no carro da polícia com dois soldados que perguntaram onde morava e quem eram seus pais. Com voz sumida, disse o nome da mãe e a feira em que trabalhava. O carro percorria as ruas com aquela luz vermelha piscando e ele não reconhecia os caminhos. Veio-lhe a imagem do anjo de pedra branca que, sob um pedestal, ornamentava a entrada da escola particular pela qual passava diariamente. Tinha uma mão erguida para o céu e a outra sobre o ombro do estudante com olhar doce e sereno. A proteção garantida aos que lá estavam matriculados. Na sua escola cada um se defendia à sua maneira e descobria o próprio anjo, entre figuras de carne e osso, audazes e efêmeras.

Foi levado a um casarão e lá dentro mandaram-lhe sentar em um banco de madeira onde aguardaria a chegada de seu responsável, sob o olhar seco de um homem com a barba por fazer. Sentia-se exausto. Encostou a cabeça na parede, fechou os olhos e imediatamente caiu num estado de torpor, onde a realidade se distorcia e se confundia com imagens de sonho. O pai chegava na porta e com um vozeirão dizia “onde é que se viu um marmanjo destes ainda não montar cavalo”; depois traziam um peixe enorme deitavam sobre uma mesa ensanguentada, começavam a limpeza e quando partiam a cabeça, saltavam os olhos cintilantes do Jamil. Pouco a pouco o corpo comprido e magro  foi se inclinando e ele já dormia pesadamente sobre o leito duro quando a mãe cruzou, quase correndo, os pesados portões de ferro, com a mão no peito, falando sozinha.

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