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RESENHA | A Morte de Virgílio

Ficha Técnica:
Título: “A Morte de Virgílio”.
Título original: “Der Tod des Vergil”.
Autor: Hermann Broch.
Tradução: Herbert Caro.
Editora Benvira, 2013, São Paulo.
Gênero: Sec. XX, ficção, ambientada no Império Romano, nos tempos de César, tendo como centro narrativo o dia 21 de setembro do ano 19 A.C., em Brundise, onde o poeta Virgílio vive o seu último dia, cogitando destruir a sua obra Eneida.

O autor Hermann Broch nasceu em Viena e morreu em New Haven, Coneticut. Estudou no Império Austro Húngaro e trabalhou na Indústria têxtil paterna em 1907. Durante a 1ª Guerra dirigiu um hospital. Vendeu a fábrica, estudou matemática, filosofia e física em Viena. Em 1938 foi preso pela Gestapo por cinco semanas, ocasião em que concebeu e iniciou este romance, concluído no exílio. Segundo Otto Maria Carpeaux (História da Literatura Ocidental, 4º Vol. Livraria Cultura, 4º vol., Leya) trata-se de uma obra prima, e Broch “é o mais profundo dos romancistas de idéias”. Uma empreitada literária que recria o último dia da vida do poeta Virgílio, horas nas quais cogita destruir a Eneida, e reflete sobre a sua vida dedicada à arte.

 Virgílio, Públio Virgílio Maro, nasceu em Mântua, hoje Calábria, em 15/10/70 A.C., e faleceu em Brundisi, sepultado em Nápoles. No leito de morte teria dito ao amigo Vário, que queimasse a sua obra inconclusa Eneida. Na Idade Média, Virgílio era chamado “Pai do Ocidente” e aos olhos de Dante, ao mesmo tempo, exemplo, poeta e guia. Para Otto Maria Carpeaux, Virgílio é o que Homero não foi e não podia ser: é artista, “Um artista incomparável do verso, da música das palavras”. A Eneida foi um clássico já na latinidade, um sucesso no mundo romano, onipresente em várias esferas, sintetizando mito e história. Pressupõe e parte da Ilíada e Odisséia homéricas. Enéas foi o fundador mítico de Roma, o herói fundador e piedoso, pai da cidade, um deus “lar familiares”, morto, um ancestral. Pois bem, Broch enfrenta a clássica temática concebendo uma obra prima que é prosa e poesia. Dividida em quatro partes, começa ao anoitecer do dia 20 de setembro de 19 A.C., quando Virgílio, doente e contrariado, atende à ordem de seu mecenas, o Imperador Augusto, para comparecer ao aniversário deste. Em uma das naus imperiais, chega à Brundise. O início da 1ª parte “Àgua” é das descrições mais lindas que já li. Tem tudo o que um magnífico texto precisa oferecer: som, luz, cor, cheiro, poesia, paisagem…

“Azuladas, leves, movidas por uma branda, quase imperceptível brisa contrária, as ondas do Adriático haviam fluído ao encontro da armada imperial, quando esta, à esquerda, das baixas colinas da costa calabresa, que aos poucos se avizinhavam, dirigia-se ao porto de Brundisi, e neste momento em que a solidão do mar, ensolarada e todavia prenunciadora de morte, convertia-se na plácida alegria de atividades humanas, neste momento em que as águas suavemente abrilhantadas pela proximidade de existências e moradas dos homens povoavam-se de navios de toda espécie, alguns que, tal e qual a frota, buscavam o porto, e outros que dele acabavam de sair, neste momento em que os barcos pescadores de velas pardas já abandonavam em toda a parte os protetores molhezinhos de um sem-número de aldeias e lugarejos, ao longo da beira irrigada de branca espuma, a fim de se encaminharem ao apanho noturno, o mar tornara-se liso, quase como um espelho. Acima dele abria-se, madreperolada, a concha do céu. Anoitecia, e notava-se o cheiro dos fogos de lenha das lareiras, cada vez que os sons da vida, marteladas ou um grito, chegavam dali, trazidas pela aragem”

Virgílio intui a morte, está no entardecer.

Na parte seguinte “Fogo – A descida”, mergulha na vida interior, vaga em sonho febril e constata: que a Eneida não avança, tem dúvidas quanto à sua capacidade artística, a inspiração está morta. Na terceira parte, “Terra”, os amigos vêm confortá-lo inclusive o Imperador Augusto. Promete não queimar a obra, embalado pela idéia de que a produção artística já não lhe pertence, é propriedade do povo romano, pois vários trechos eram conhecidos pela população. Na quarta parte, “O Retorno”, voltam imagens trabalhadas no início, agora, “a costa ficava atrás, e isso parecia com uma fácil despedida das existências e das moradas humanas”. O poeta se confunde com o universo, com o absoluto, e não se sabe se algo está sendo dito ou é sonhado. Virgílio é citado em muitas oportunidades, textualmente e muito do texto da Eneida está incorporado na narrativa. Há um posfácio de Marcelo Backes, em que o citado professor destaca as mais importantes citações, v.g. “Fácil é o caminho que desce ao Hades, e sempre encontras abertas…”. Na época em que foi concebida por Broch, sentia profunda decepção com o declínio dos ideais e valores. A obra faz velado paralelo do império de Augusto com o nacional-socialismo. São duas épocas marcadas pelo naufrágio, pelo declínio. Segundo Backes, “é uma das maiores narrativas da literatura universal sobre a morte, elaborada com mais poesia e algumas centenas de páginas a mais, o tema central de Tolstoi em “A Morte de Ivan Ilitch…”, “investiga a morte, aprende-a através do conhecimento, e, para isso, constrói talvez o maior prosoema da literatura ocidental…”, “um romance pode ser poema, mesmo escrito em prosa”. Ao concluir a leitura desta obra engenhosa e brilhantemente concebida, a constatação de que não sei como pude viver tanto tempo, sempre com um razoável período dedicado a ler, ser ter lido Hermann Broch.

Agora é ler Eneida, iniciada em 29 A.C., e publicada 10 anos depois. Ela está para Roma como a Ilíade e a Odisséia para Grécia, inventando um passado coletivo glorioso. Não foi por acaso que Dante escolheu Virgílio como guia na Divina Comédia. Herman Broch tem ainda publicados “Os Inocentes”, “Os Sonâmbulos”, trilogia dos 30 anos da história européia. É um romancista da estatura de Joyce e Proust, pouco conhecido, lamentavelmente.

Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.


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Comentário

  1. Elizabeth

    Estou lendo A Morte de Virgilio e essa resenha me auxiliou nessa viagem.
    O livro é de tirar o fôlego. ..
    Nao serei a mesma leitora ao fim dessa obra.

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