Então minha mãe se aposentou. A contragosto, é certo, constrangida pela compulsória, posta, de uma hora para a outra, diante de um latifundiário tempo livre, a ser ocupado com as coisas que geralmente os afazeres da vida laboral não deixaram acontecer. Depois de um breve desespero diante do ócio, ela não teve dúvidas: que lazer que nada (esse tormento), tratou logo de arrumar trabalhos de ex-orientandos e até de outros interessados da universidade, quaisquer estudos que lhe permitissem seguir fazendo o que fizera ao longo de mais de quarenta anos: ciência.

Para sua menor alegria, contudo, o tempo vago era maior do que as demandas de ajuda. Assim,  ela passou a se dedicar à casa, com o afinco usado em suas pesquisas, com o olhar agudo da antiga paleontóloga, o que talvez seja útil para o que restou na escala dos milhões de anos, mas não necessariamente adequado para a evolução das coisas no dia a dia.

Foi quando lhe sugeri que tentasse algumas das tantas séries disponíveis em nossos tempos. Era o que eu faria, maratonas inteiras. Ou quem sabe um mergulho nos tantos romances presenteados e não lidos ao longo dos anos. Recebi de volta um muxoxo. Apesar disso, deixei minhas sugestões, em especial Merlì e O homem do castelo alto.

Dias depois, ela me escreveu dizendo ter encontrado uma série que a mantivera em vigília madrugada adentro. Fascinada pelos protagonistas Claire e Jamie — mas especialmente pelo último —, tinha assistido a mais de sete capítulos na sequência. E já começou a me explicar o estrambótico enredo: uma enfermeira da Segunda Guerra, em viagem à Escócia, a tal Claire, passa por umas pedras mágicas e retorna duzentos anos no tempo, conhecendo um rapaz chamado Jamie, com quem se envolve e se enrola por umas quantas temporadas. Outlander é o nome do novelão.

Como sabem ser cruéis os filhos, não é verdade? Não demorou para que eu e meus irmãos adotássemos um espírito de troça em relação à série. Mas o certo é que quanto mais debochávamos do argumento, mais aferrada nossa mãe se punha em relação à beleza e às peripécias do Jamie. Assevero a vocês que ela já faz planos de conhecer a Escócia, lugar que jamais lhe despertara interesse, e que já faz parte da página de fãs do ator que incorpora o protagonista de Outlander.

Ainda que me pergunte por que o Jamie, sei exatamente o nome do remédio que por fim pôde ajudá-la neste momento vital tão complexo, tão transformador. É um remédio usado há milênios, que,  mesmo provindo de fonte duvidosa,  jamais deixa de cumprir seus efeitos.

Chama-se arte.

Voz: Pedro Gonzaga
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