Quando Diodoro Sículo visitou o Egito no século I d.C., ele viu, na entrada das ruínas da antiga biblioteca, uma inscrição gravada: “Clínica da alma”. Talvez essa possa ser a aspiração máxima de uma biblioteca.
Alberto Manguel

A INQUIETUDE

Tela branca à frente. A síndrome. Apenas aberto um documento word sem uma mísera palavra escrita, evidenciando a absoluta ausência de qualquer ideia, sequer uma ínfima noção acerca do que escrever. Quando os olhos saltam para mirar um foco de menor luminosidade, a mente é implacavelmente assaltada pela lembrança do edital.

A vontade é de, escrupulosamente, mandar esse edital às favas. Porém, é imperiosa a minha contribuição. Não posso faltar justamente com a “Associação”, aquela abstração espiritualmente concreta para quem devoto tanto carinho. Há também a imagem do sorriso leguminoso expressando um simpático “por favor”.

Além disso, houve o telefonema. A voz reconhecida de imediato, a tonicidade paulatinamente aumentando, a fala jocosa terminada com uma risada ou um quase grito. Era o editor! Imaginei-o com seu gestual expansivo, nervoso, impositivo, como se fora responsável pelo próximo número da New Yorker.

“Tchê, escreve algo para a Revista. Tu precisa mesmo escrever! Qualquer coisa. Ninguém vai ler mesmo. Nem eu! Só para engordar a publicação”.

Como recusar esse convite tão amável, essa intimação melíflua? Topei, já antevendo meu arrependimento.

Pois cá estou, arrependido. Condenado à frívola contemplação dessa maldita tela branca. Praguejando o editor e imaginando formas de castigá-lo. Não fosse eu refratário à violência e imediatamente partiria para as agressões, físicas e verbais. Mas é tarde.

Enquanto se aproxima o prazo final, aumenta a minha angústia. Me sinto um personagem de Vila-Matas. Real ou imaginário, não importa. É a síndrome de Bartleby a constranger os gênios e os medíocres. Minha obra prima será escrita, confio. Mas está longe de ser agora.

Pensei em Pierre Menard. Sim! Quem sabe reescrever não o Quixote, mas a Ilíada. Tarefa cansativa, deveras, mas instigante. Mas não há tempo para um projeto dessa magnitude, conquanto me sobre talento. Quem sabe uma obra menor? Em tamanho, claro! Talvez o relato dos sofrimentos de um solitário moribundo à beira da morte, a recordar sua então insofismável autoridade de agente público, enquanto seus familiares, indiferentes a sua dor, confraternizam pelo fim do Domingão do Faustão. Ou que tal descrever minha transformação num imenso inseto? Dessa vez com asas, inutilizáveis porém, em decorrência do meu excesso de peso.

Não! Não! Meus atributos de escritor não podem ser desperdiçados. Sem falar no risco de injustificadas censuras ao argumento de que estaria mimetizando outras narrativas.

Assim, convencido de que o que eu escreverei não será mais interessante do que o contido numa lista telefônica, resolvo cometer uma inconfidência.

Pois bem. Se alguém conseguiu acompanhar essas linhas até aqui, sem qualquer intenção de me sugerir o suicídio, advirto, a revelação não é sobre terceiros. É a respeito de mim mesmo. Nada digno, pois, de aparecer em noticiários espalhafatosos e bisbilhoteiros. Prefiro o desalento e o abandono do leitor ou da leitora à sua companhia por mera comiseração. Opto por ser um escritor incompreendido, cujos trabalhos ninguém lê. Dispenso o sucesso na mesma medida em que recuso a modéstia.

Voltando à inconfidência, narrarei um sonho. Na pandemia, sobrou tempo para fantasias e devaneios. Pelo menos o tempo em que deixei de esmurrar a direção do automóvel por estar retido no tráfego. Não lembro de estar desperto, mas tenho certeza de que especulava sobre o que poderia amenizar a inação, o sofrimento, as mortes, a falta de vacina. O delírio começou sem maiores contratempos.

O SONHO

Simplesmente apareci, sem nenhuma explicação, em um local que lembrava um anfiteatro da Grécia antiga. Me animei, o sonho começava chique, repleto de promessas. Então vislumbrei um homem, um pouco carente de pelos na cabeça e com excesso deles no rosto. Vinha calmamente em minha direção, a passos curtos e medidos, pronunciando poemas dos quais apreendia apenas a musicalidade. Ao se aproximar, enunciou com voz nítida e robusta de locutor:

– “Sou Mestre Petrus, o poeta, o professor, o músico”.

– “Salve Petrus, sou…”

– “Sei quem és! Estás aqui para uma aventura épica, para aprenderes como suportar a pandemia. Quem escolhes como guia? A Dante, com propósitos mais dignos, concedi Virgílio.”

Fiquei em dúvida. Passados alguns minutos, impaciente, o Mestre advertiu:

– “Vamos, vamos! Há muitos outros que preciso atender. Escolha rápido! Pode ser um poeta de qualquer estirpe e época.”

Se podia de qualquer estirpe e época, escolhi Jim Morrison.

-“Pois bem. Sigas e encontre Doors”.

Satisfeito com a minha preferência, adentrei na selva escura indicada por Mestre Petrus. Já contava em encontrar não apenas Mr. Mojo, mas todo o pessoal da banda. Contudo, tão logo atravessei a mata – que, convenci-me, nada mais era do que uma parede – observei que as coisas não saíram bem de acordo com as minhas expectativas. Esperavam-me uma capivara, um quero-quero, um graxaim-do-campo e, de batinas franciscanas, Doors. Sim, Doors! Mas não a banda, e sim o famigerado editor. Nada mais nada menos do que o déspota esclarecido de Sobradinho.

Apontando-me uma porta com imagens funéreas, meneou a cabeça como se dissesse “sigamos”. Aludi, atemorizado, que não seria boa ideia. Como uma esfinge, Doors falou:

-“Convença-me do contrário”. Estranhei que sua voz era idêntica à do Paulo César Pereio.

-“Mestre Doors, admirável beat dos pampas, acredito que divergimos sobre quem deva estar no último dos círculos do inferno. Eu gostaria de lá encontrar Margareth Thatcher, enquanto vossa magnanimidade, possivelmente, o Chico Buarque e o Dorival Caymmi”.

-“Tens razão”, sigamos por outro caminho.

Enquanto cogitava de uma eventual desventura pela minha proposta – pois ao final da jornada, no céu a mim destinado, Alessandra Negrini poderia ser minha Beatriz –, notei que Mestre Doors tirava sua batina. Ao se voltar para mim – com camiseta com estampa do The Dark Side of The Moon, bermudas floreadas e alpargatas – fez sinal para que prosseguíssemos, liderados pelo quero-quero, pela capivara e pelo graxaim.

-“Esse caminho é mágico, macunaímico! Num passo podemos ir de Uruguaiana a Jaguarão”.

– “Certo, Mestre”.

-“Mestre o cacete! Fecha os olhos e pula”.

Obedeci. Findo o pulo, abri os olhos e estávamos em Cruz Alta.

-“De novo!”

Cumpri, e, de repente, estávamos em Alegrete. Novamente! Agora em Pelotas.

-“Entendeu a viagem?”

-“Acho que sim. Erico, Mário e Lopes Neto”.

-“Sim. Esses são os Mestres. Os inimitáveis, os inigualáveis. Há outros. De novo…”.

Abri os olhos e estávamos num bar, de cuja esquina era possível ver o mar.

-“Entendeu? Vinícius. Esse é fera. Além de emérito bebedor de uísque, casou oito vezes!”

-“Acho que entendo. A literatura salva! É isso? Prossigamos então! Que tal alguns estrangeiros? Thomas Mann, Philip Roth? Ou os clássicos, Goethe, Dostoiévski, Cervantes?”, indaguei eufórico.

-“Contenha o entusiasmo. Com a cotação do dólar e do euro nas alturas, os custos precisam ser em reais”.

Então, como se não tivéssemos interrompido a caminhada, novamente estávamos perseguindo o quero-quero, a capivara e o graxaim.

-“Há também pessoas próximas, amigos nossos, que podem responder a tua indagação”, disse Doors.

Mais adiante entramos numa casa de campo. Ingressamos. A um canto estava Don Roberto, sentado próximo ao fogão campeiro, sorvendo um mate, de poncho negro, em silêncio. A expressão grave em seu rosto manifestava que sim, a história pode se repetir, a pior parte dela, inclusive. De inopino, Don Roberto profere quatro palavras “tigre, espelho, labirinto, bifurcação”, e estala os dedos.

Aparecemos Doors e eu sentados ao lado de outro artesão das palavras, à beira de um rio. Não sei se era o Guaíba, até porque desconheço se o Guaíba é rio ou lago. Não importa. Pelo pôr do sol parecia, pois se tratava de um pôr do sol belíssimo, quiçá o mais lindo do mundo. O artesão nos encarou e proferiu: “noites podem ser de fogo, pois os outonos estão reservados aos sáurios”.

Das palavras de Don Roberto e do artesão, depreendi que o mundo estava de pernas para o ar. A literatura pode não o desvirar, mas pode ajudar de alguma forma. O artesão bate palmas e estamos, Doors e eu, novamente em campo aberto, na companhia do quero-quero, da capivara e do graxaim. Tive a impressão de que os três, educada e reservadamente, discutiam sobre futebol. Tomei coragem e me dirigi a eles.

-“Sobre o que falam?”

O graxaim respondeu. “Ele é gremista, ela é colorada e eu sou isento. Discutíamos quem é o melhor”.

-“O Grêmio é óbvio. Mas um assunto tão polêmico e vocês tranquilos…”

-“É que somos mais civilizados do que vocês. Isso, desde que tomada a palavra na sua correta acepção. Não falamos mais com vocês, humanos, porque não nos compreendem. Falávamos bastante com nossos amigos nativos, até eles serem massacrados pelos brancos conquistadores. Desaprendemos definitivamente a falar com vocês quando, ante o sofrimento dos nossos amigos negros, indígenas de outras terras, não tínhamos palavras para designar o sofrimento deles perante a escravização. Desistimos de vocês, mas conversamos entre nós, seres vivos não humanos. Você não conhece Esopo?”

-“Talvez vocês não falem conosco porque não tenham nada a nos ensinar. E temos Ovídio, Sêneca, Homero! E isso é só o início!”

-“Que ingênua pretensão a sua. De que adianta, Ovídio, Sêneca, Homero se vocês não os compreendem? De que adianta a arte se vocês não a compreendem? A literatura não salva, mas pode ajudar, assim como, incompreendida, pode definitivamente nos afastar da salvação”.

Não entendi bem o teor daquela comunicação, mas fiquei convicto de que ambos latíamos. Enquanto isso, Doors, o quero-quero e a capivara conversavam animadamente sobre religião. Antes que eu fizesse qualquer comentário, o editor falou:

-“Ela é católica e muçulmana, ele é judeu e protestante, e eu, isento”.

-“E eu de umbanda”, declarou o guaxinim.

-“E vocês em harmonia… Mas como pode?”

Todos gargalharam da minha pergunta. Só pararam quando o editor apontou para o horizonte. Todos ficaram sérios. Foram avistados dois homens a cavalo.

-“Dois homens a cavalo!”, e minha fala parecia o som agudo de um quero quero. Imaginei que eram dois caçadores. Enquanto eu era tomado de uma pequena alegria em desforra, uma espécie de schadenfreude gaudério, e devaneava com aqueles bichos em fuga, todos começaram a gargalhar novamente, e, em uníssono, gritaram “São Rock&Hudson”.

Aos sorrisos, sem nada falar, os cowboys nos apontaram um rancho para o qual nos dirigimos. No portão, como vigilantes, estavam Charlton Heston e John Wayne, este com uma Espada de São Jorge e aquele com Brincos de Princesa nas mãos. Nos abriram passagem e ingressamos no local, e o que eu vi era surreal.

Alice tomava chá com Sid Vicious; T.S.Elliot servia de alvo para Bob Cuspe; Stan Lee jogava cartas Agnés Varda; García Márquez abraçava Nelson Rodrigues; George Harrison dedilhava sua guitarra para Adorno; João Cabral de Melo Neto assistia, com Salvador Dalí, a um programa de debates entre Isahia Berlin e Rosa Luxemburgo; Shakespeare e Miró montavam um Lego orientados por Fellini.

E havia muito mais! Concentrando-me para identificar outros artistas, de repente Cormac Mcarty passou arrastando Javier Bardén pela peruca, seguidos por Conrad e Marlon Brando às risadas e gritando “O horror! O horror!”

Então, um sinal sussurrado pela voz de um anjo ao meu ouvido me convenceu de que tudo o que eu vira era suficiente. Doors olhou-me e questionou, ainda com a voz do Pereio:

-“Compreendeu agora?”

-“Sim! Sim! Compreendi! Compreendi!”

Acordei, mas infelizmente não lembro o que exatamente havia compreendido.

A EPIFANIA

Ao final da lembrança desse sonho, mais do que preocupado por ainda não saber o que escrever, passei a questionar também o porquê e o para quem escrever.

Não sei responder pelos outros. Não há resposta universal. Cada qual que faça o seu juízo de valor. A forte impressão que me causou “Ana Karenina” pode ser um enfado para outro leitor. ”Dom Casmurro”, acusado de entediante por alguns, me apontou inúmeras janelas. Maria Carolina de Jesus, de quem a maioria sequer ouviu falar, me aproximou de uma realidade cujas dores eu não imaginava.

Se esses textos me ofereceram lentes com as quais eu posso enxergar a vida de forma diferente, é porque esses mesmos textos e muitos outros podem fazer com que outras pessoas também enxerguem a vida diferente. E esse processo nos enriquece, proporciona novas ferramentas para lidarmos com os problemas cotidianos.

Escrever, mas também pintar, filmar, compor, fazer arte, enfim… não para escapar da realidade, mas para vivê-la com mais aptidão, habilidade, preparo, versatilidade, compaixão. Por que a arte é libertadora. Se me desacorrenta, pode desaferrar também outras pessoas. Essa é a minha crença. Sou um apologista das artes. Portanto, no fundo, o que escrevo é irrelevante. O que valerá a pena é que qualquer bobagem despretensiosa de minha autoria possa remeter quem a ler a textos que verdadeiramente importam.

Claro que a arte não é a única ferramenta humana para enfrentar a pandemia. Precisamos do amor, da amizade, da família, da solidariedade. Tampouco tem o poder, senão ficcional, de ressuscitar os milhares de mortos. Mas ela pode servir de amparo nas e para as dificuldades. Pode remediar parcialmente a dor.

Não serei cínico a ponto de preconizar que um livro, uma música, um filme ou um quadro me fez superar a perda de um ente querido. Mas me ajudou com o luto, a continuar meu caminho, a diminuir meus pesares, a sufocar minha melancolia. Não sou hipócrita a ponto de afirmar que a arte salva, mas tenho a fé de que ela mostra um atalho para a salvação.

Se agradeço ao acaso por não ter sido contaminado pelo vírus que ora nos assola, também sou grato àqueles que me ajudaram a enfrentar a pandemia. Obrigado Vila Matas, Borges, Tolstoi, Kafka, Schaan, Marcel, Pedro Gonzaga, Adão! Obrigado a todos aqui citados e os não referidos! Obrigado Doors, por me apontar caminhos! Quem não esteve comigo na pandemia, por certo antes contribuiu para forjar o ser humano a quem está sendo possibilitado por ela passar. Obrigado pelas tristezas, alegrias, sorrisos, despertares! Obrigado por me fazerem ver que, apesar das dificuldades, precisamos seguir em frente! Obrigado por serem um ombro amigo, ainda que figurativamente e à distância! Obrigado por me fazerem pensar, por me tirarem do conforto ao mesmo tempo em que me confortam! Obrigado por me inquietarem! Obrigado por me humanizarem!

Para quem escrever? Para mim mesmo. E para o eventual e infortunado leitor ou leitora destas linhas comuns, tortas, meio moralistas, um tanto ingênuas. Que elas despertem ou cativem para leituras mais promissoras, mesmo que obtidas numa lista telefônica. Se alguém, ainda que por uma furtiva passagem de olhos, se sentir estimulado a tomar contato com qualquer dos artistas aqui mencionados, todo o meu esforço ao escrever terá valido a pena.

Na pior das hipóteses, o exemplar segue um pouco mais engordado.

E, superada a agonia inicial, com essas mal juntadas palavras ao longo do documento não mais em branco, só me resta agradecer…

Obrigado, edital, pela oportunidade!

Voz: Juliana Chaves Dias
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