No que concerne às coisas humanas, não rir, não chorar, não se indignar, mas compreender.
Baruch de Espinosa

I.

O locutor do rádio vocifera, contaminado de alegria, reverberando o otimismo ingênuo de um mundo sem problemas: “Bom dia! Hoje, dois de junho de dois mil e vinte, vinte e nove graus! Cinco, trinta e cinco, nove, cinquenta e nove”.

Os números, robustos, cheios, pretos, então, passam a valsar em pares. A seguir, ficam vermelhos e começam a derreter. Liquefeitos, escorrem por uma calçada incerta. Por onde passam nada se cria. Nem mesmo lembrança. Tampouco culpa.

De repente os sapatos pretos. Guto os calçava ao despencar do prédio envidraçado onde trabalha. Não caiu, jogou-se. Mas jamais usara sapatos pretos. Eram os mesmos sapatos pretos do tio-avô imóvel dentro do caixão. O primeiro velório de Guto. Sua primeira lida com a morte, real, não contada, não intermediada pela televisão. Incomoda a vista do rosto muito pálido, com tufos de algodão nas narinas e ouvidos, porém, o que mais o impressiona são os sapatos pretos. Os sapatos pretos que distinguiam o tio-avô da peonada da fazenda. Peonada preta sem sapatos. Os sapatos pretos, desdenhados pelos filhos, enterrados com o tio-avô para que não tivessem outros donos.

Guto lembra do tio-avô aos gritos com os empregados, com a mulher, com os filhos, porém dócil e afetuoso com os netos, seus primos. Sentia pena do tio-avô ali deitado, imóvel, impassível. Não identificava o motivo dessa comiseração. Talvez fantasiasse com o velho acordando em desespero, sepultado, o absurdo do silêncio, interrompido pelos gemidos desesperados do não morto, com a visão limitada aos sapatos pretos. Ou porque imaginasse o velho indo para o inferno ou para o céu, onde responderia ao diabo ou a algum santo sobre seus pecados. O inadiável balanço dos bons e maus comportamentos concluído por um anátema ou por uma benção. Como de fato tudo deve ser, branco e preto, o bem e o mal, o homem de bem e o não homem de bem.

Como o tio-avô, Guto também seria julgado. Mas não era a ânsia de julgamento o propulsor do pulo. O impulso decorria do seu desespero, da sua falta de resiliência, da sua agonia com os insistentes boletos, com o casamento frustrado, com os filhos indolentes, com as resistências de Mayara, com o governo corrupto, com a violência, com os impostos, com as guerras. Por tudo isso pulava em direção ao espaço vazio. Contava com que o desespero pudesse suavizar a censura ao suicida.

Enquanto caía, projetou a dor imediatamente anterior à morte, na fração de segundos em que sofreria demasiado, desmerecidamente. E então se arrependeu. E se desesperou. E teve medo. Mas era tarde…

II.

Guto acordou ofegante, fatigado. Pelo menos não fizera nenhum movimento brusco como das outras oportunidades, pois Kátia permanecia dormindo.

Já perdera a noção de quantas vezes se repetira aquele pesadelo. Sempre igual. Os números, os sapatos pretos, o tio-avô morto, o suicídio. Devia ser por conta daquela maldita pandemia que não acabava. O pesadelo era sua metáfora pessoal para o vírus.

Vírus desgraçado! Interrompeu os resultados positivos da empresa. Havia indícios de que a curva descendente revertera seu rumo, que os patamares anteriores seriam retomados, ainda assim as perdas seriam inevitáveis. Precisou fazer ajustes, demitiu funcionários, reduziu bonificações. O mais doloroso, todavia, foi o impacto na economia caseira. Diminuiu a qualidade dos vinhos, atrasou o pagamento das aulas particulares, suspendeu a prática do hipismo. Considerava-se injustiçado por ter de intervir nas reservas financeiras. Pelo menos as perspectivas melhoravam, amenizando sua indisposição.

De resto, Kátia compreendera a situação, passando a contribuir com as despesas da casa. Isso até reanimara um pouco o casamento. O desalento de Mayara, assim como as limitações dos filhos, era administrável, exigia paciência e perseverança.

-“Amor, não vai levantar?”, perguntou para Kátia.

-“Agora não, amor, faz lá teu café. Te vira. A Joana só chega às dez. E porque eu insisti.”

-“Sério?! Que gente! Parece que esquecem tudo o que fazemos por eles.”

-“Sim, faz pouco que compramos os materiais escolares do Pedrinho. Tu acredita que ela teve a petulância de me dizer que estava com receio de pegar ônibus? Onde já se viu! Já não basta agora terem horário?! Nós não podemos parar de trabalhar, mas ela sim!? Te vira, amor. Essa história ontem com ela me estressou. Nem sei se vou trabalhar hoje, aquela dor no estômago voltou”.

-“Tá bem, amor. Tô atrasado. Qualquer coisa manda um whats.”.

III.

Jogou no chão o pijama, tomou uma ducha quente e vestiu-se. Saiu da suíte e caminhou pelo longo corredor que levava às demais dependências do luxuoso apartamento. Passou pelos quartos dos filhos.

Michele suspendera o curso de graduação. Se sentia ansiosa com a pandemia. De qualquer forma, Guto pensou que talvez o trancamento da matrícula fosse conveniente. Afinal, era menos uma despesa, o custo da faculdade estava caro, e a filha poderia repensar o curso. Letras não assegurava o futuro de ninguém. Michele está destinada a ser professora, ganhando uma miséria, mas claro que com o padrão de vida alto mantido pelo papaizinho, sempre por ela criticado por apresentar visões elitistas sobre os mais diversos temas.

As aulas de Júnior eram online. Seu desempenho escolar decaíra muito com a pandemia. Mas a reabertura da pista de skate no parque do bairro parece ter reanimado o garoto. Guto não esquecia de quando encontrou maconha na mochila do filho. Tivera colegas de faculdade drogados. Conhecia um pouco do riscado. O comportamento suspeito do filho autorizara moralmente a busca. Era necessário agir. E as estratégias dele e de Kátia parecem ter surtido efeito. Interromperam a amizade de Júnior com um moleque do Centro, um tal Foguinha. Não era companhia para o filho. De comportamento afeminado, filho de pais separados, cuja mãe estava sempre desempregada, enquanto o pai mantinha uma banca num shopping popular vendendo bugigangas, Foguinha não merecia confiança. E eram os três de religião. Péssima influência para o filho, com certeza. Incumbiram Joana de revistar disfarçadamente as coisas de Júnior sob a justificativa de arrumar a bagunça diária. Além disso, Kátia discretamente cheirava o filho para identificar algum odor suspeito.

Ficou surpreso ao ver Junior tomando café. Por estudar à tarde, raramente o filho acordava antes das onze horas. Enquanto Júnior devorava a refeição, Guto procurou estimar, pelo número de pães consumidos, a despesa que tinha com os filhos. Desistiu para não se irritar.

-“Ué! Já acordado!?”

-“Vai ter uma competição de skate no parque. Resolvi participar”.

-“Vê se ganha”.

-“Mas é só entre amigos”.

-“Não importa. É bom para a tua estima… E a escola?”

-“Na mesma. Ah! Pai, preciso comprar um livro.”

-“Pra quê? E os livros que tua mãe comprou no início do ano? Já gastamos uma baita grana.”

-“É pra um trabalho.”

-“Não tem como baixar da internet?”

-“Vou ver.”

-“Se conseguir, melhor. E aquele teu amigo que tá um ano na tua frente, será que ele não tem? Se não conseguir pela internet, tenta com ele.”

-“Tá. Vou ver. Ah! Pai, pediram pra escrever uma redação sobre canção de protesto. O que é isso?”

-“Quem pediu?”

-“O profe Jaime, de História.”

-“Que cara chato. Vê na internet, Júnior. Isso é coisa que já passou, sei lá. Por que esse pessoal não fala de mercado de trabalho? Esse papo dele aí não serve pra nada. Vai por mim. Tem que pensar em ser empreendedor. Sei lá, como comprar um carro pra trabalhar de Uber. Pelo menos pra começar. É isso que deviam ensinar. Até aula de culinária seria melhor.”

-“Sei lá, pai. Pelo que ele falou, parece legal.”

-“É política, filho. Isso só envolve palhaçada. Olha na tevê. É corrupção todo o dia. Só tem corrupto nesse meio e patetas que defendem os corruptos para ganhar alguma vantagem. Se preocupa contigo, filho. Ouve teu pai. Faz tempo que vou lá, enfrento fila, gasto gasolina, por ser obrigado a votar nesses ladrões filhos da puta. Esquece isso. Olha o que eu pago de imposto sem receber nada em troca. Pensa em ganhar tua grana, em ser independente, ir pro exterior, se vestir bem, pegar umas gatinhas.”

Júnior riu.

-“Gatinha?! Que conversa, pai! Não é gatinha, é mina. E nesse assunto aí eu sou profi.”

Agora foi a vez de Alfredo sorrir, não apenas pela segurança do filho, mas por intuir que suas lições foram bem recebidas.

Sentiu-se feliz pela sua família.

IV.


Pegou Mayara em frente ao prédio em que ela morava. Com a pandemia se encontravam mais esporadicamente, pois a mãe fora residir com ela. Não podiam, portanto, se encontrar no apartamento de Mayara. Os motéis permaneceram fechados por longo tempo, mas com o início da reabertura, Guto esperava retomar o ritmo normal dos encontros. O problema era que Mayara se ressentia da higienização desses lugares. Tinha receio de contrair o vírus e passar para a mãe. Assim, seus encontros se resumiam a caronas, nas quais se limitavam a alguns beijos e abraços, o que aborrecia Guto. Sentia saudades do sexo com Mayara.

Dirigindo, com a mão direita na coxa de Mayara, pensou em Kátia. Recolheu o braço rapidamente, em manifesto arrependimento. Mas logo concluiu que a responsabilidade pelo relacionamento extraconjugal, na verdade, era de Kátia. Ela que deixara o casamento esfriar. As relações sexuais se tornaram esparsas, quase que limitadas a um papai-e-mamãe preguiçoso, burocrático. Não havia mais assuntos em comum, senão a respeito dos filhos. E Kátia, invariavelmente deprimida, não cuidava mais do corpo. E isso já antes mesmo da pandemia. Não havia desculpas. Era tudo muito diferente com Mayara. Que, além do mais, não cobrava nada de Guto.

Liberto de qualquer culpa, se sentiu satisfeito, desejado, feliz. Jogou o cigarro ainda aceso pela janela do automóvel, junto com o papel que enrolava uma bala de menta.

V.

Saiu da empresa atrasado para a consulta com o doutor Camilo. Tudo intransitável, nenhum atalho apontado pelo aplicativo, o que causou profunda irritação em Guto. A transa com Mayara fora ótima e fechara um promissor contrato de importação, mas a perspectiva de encarar o trânsito caótico trouxe a sensação de que estava sendo injustiçado pelo acaso. Confirmou sua intuição ao atender a ligação de Kátia.

-“Não respondeu meu whats?! Onde tu anda?”

-“Nessa porra de trânsito. Indo pro psi. O que foi?”

-“Ah tá. Advinha! A Joana. Não veio hoje e ainda pediu um adiantamento. Parece que o Pedrinho precisa de remédio para aquele problema nos ossos. Eu dei, mas já me arrependi. Queria perguntar o que tu achava, mas não te encontrei. Acabei não indo mesmo trabalhar.”

-“Acho que fizeste bem, amor. Acho que sim, sei lá. Vai ver o guri precisa mesmo, né?”

Mas logo que viu um menino colocar dois sacos de doces no espelho retrovisor da sua camionete, Guto se arrependeu do que havia dito. Bem que Pedrinho podia se esforçar, fazendo como essa criança, e começar a ganhar algum dinheiro ao invés de pedir. Concluiu que Joana queria para Pedrinho o mesmo tipo de vida de Júnior. Mas se ela tivesse se dedicado aos estudos e ao trabalho como ele, Guto… faltou empenho.

Abriu a sinaleira e não pensou mais no assunto.

VI.

Entrou no consultório.

-“Como vão os pesadelos, Augusto?”

-“Na mesma, doutor. Acho que é por causa da pandemia mesmo”.

-“Pode ser, Augusto. Mas pode haver outras motivações.”

-“Pensei nos números, doutor. E me dei conta do seguinte. Cinco é a idade que eu tinha no velório do meu tio. Trinta e cinco mais nove, dá a minha idade. Só não sei o cinquenta e nove. Talvez por juntar o cinco e o nove…”

-“Pode ser, pode ser. Com apenas cinco anos, ser apresentado diretamente à morte, ao frequentar um velório, pode causar um grande trauma.”

-“Pensei nisso, doutor. Meus pais foram irresponsáveis em me levarem. Mas não sei se esse é o único motivo de eu sonhar com esse tio. Acho que por ele ser forte, rico, acabou me servindo de exemplo.”

-“Pode ser…”

Terminada a consulta, Guto pagou o valor sem recibo e saiu satisfeito com a receita do medicamento na mão. Garantido o remédio por mais trinta dias, o seu santo salvador. Estivera bem pior, pelo menos atualmente eram só os pesadelos. Com a droga superou as implacáveis crises de ansiedade. Não se interessava pelo blá-blá-blá pseudocientífico do psicanalista. Queria mesmo a receita. E, de posse dela, sentiu-se feliz.

Voltou a pensar no tio-avô. No seu sucesso em vida e no seu fracasso na morte. Não desdenhadas pelos filhos, as extensas terras do tio-avô não tiveram o mesmo destino dos sapatos pretos. Negócios malformulados, dívidas suspeitas, cizânias familiares liquidaram o patrimônio, ainda que assim não indicassem as aparências, pois os primos ainda se comportavam como membros de uma aristocracia. Petulantes sem lastro. Guto não tencionava ser enterrado de sapatos e queria que seus filhos não arruinassem a riqueza que ele angariava aos poucos com muito trabalho e dedicação. Se dedicaria a isso com afinco. Nada, absolutamente nada poderia desviá-lo desse propósito. Haveria de obter sucesso também na morte.

VII.

Àquela hora, no retorno para casa, o trânsito era mais fluido. Alterando estações do rádio pelo controle da direção, Guto encontrou algo familiar e prazeroso aos seus ouvidos. Ahhhhh! Raulzito…

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou o dito cidadão respeitável…

Tudo está voltando à normalidade, refletiu Guto, acometido de uma incontrolável alegria. O sol há de brilhar mais uma vez, para os homens de bem. Mesmo os pesadelos terminarão.

Voz: Jaqueline Mello Marques da Cruz
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