Na véspera de a AJUFERGS completar os vinte anos, os associados, juízes e desembargadores se depararam com uma calamidade pública sem precedentes, que atingiu nosso estado, o Brasil e o mundo. Nesse momento de grave crise sanitária, carências e dificuldades de toda ordem, especialmente para a população mais vulnerável, surgiram entre os associados um movimento espontâneo de mobilização, prontamente abraçado em nível associativo, tendente à implementação imediata de ações capazes de amenizar um pouco as carências enfrentadas pela parcela mais necessitada da população.

A cultura de um povo é composta por seus valores, crenças e atitudes. Da mesma forma, a cultura de uma associação. Quando a pandemia da COVID-19 colheu a todos, de forma abrupta, inesperada e violenta, surgiu o desassossego frente a uma situação, inclusive social, que precisava de solidariedade.

E, dentre diversas possibilidades para expressar essa solidariedade, a escolha recaiu sobre a fome, que, se já é um problema crônico em situação de normalidade, com o fechamento repentino do comércio e dos serviços, se agudizou de forma vertiginosa, especialmente para as pessoas que vivem nas ruas ou em comunidades mais vulneráveis.

No início do mês de abril de 2020 – e a partir daí mantendo periodicidade semanal –, os associados realizaram ações, optando pela distribuição de refeições, elaboradas e distribuídas pelos próprios associados, de acordo com a respectiva disponibilidade de tempo, habilidades e conhecimentos.

A comida se constitui em “mola real do relógio humano, (…) único atributo universal de todos os seres humanos[1].  Se cozinhar é um ato de amor[2], mais do que alimento, a mobilização da AJUFERGS se orientou no sentido de proporcionar comida como dignidade, fonte de prazer, feita com capricho e carinho para ser saboreada.[3] 

Como sabiamente já cantavam os Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. À parte de constituir a comida em si elemento formador da identidade cultural[4], a ligação entre comida, cultura e arte é destacada na arte culinária – no aforismo de Carême, os poetas amam a boa mesa e celebram a ambrosia[5].

Essa conexão entre arte e comida é ainda mais destacada pela literatura, que podemos sintetizar em Eça de Queiroz: “a poesia e a cozinha são irmãs!”.  Sem precisar recorrer aos artistas de além-mar, lembremos, por todos, do poeta chileno Pablo Neruda e de suas odes à comida[6]. Da sua “Oda al pan”, se extrai o seguinte excerto:

“del mar y de la tierra haremos pan, plantaremos de trigo, la tierra y los planetas, el pan de cada boca, de cada hombre, en cada día llegará porque fuimos a sembalo y a hacerlo. No para um hombre sino para todos. El pan, el pan para todos los pueblos. Y con él lo que tiene forma y sabor de pan repartiremos: la tierra, la belleza, el amor. Todo eso tiene sabor de pan, forma de pan, germinación de harina. Todo nació para ser compartido, para ser entregado, para multiplicarse”.

Se enveredássemos mais adiante por essa seara, pelo caminho da literatura, da música, da pintura, do cinema, teríamos referências para milhares de páginas, mas paramos por aqui, para dar espaço à ênfase da outra dimensão cultural da ação social da AJUFERGS: a difusão da cultura da solidariedade, do voluntariado, da atuação conjunta de forma organizada e consistente visando ao bem comum.

Esta iniciativa de preparar e oferecer refeições à população em situação de rua e a outras pessoas em posição de vulnerabilidade, entabulada num período especialmente difícil de situação de pandemia, simbolizou um direcionamento social e humanitário das atividades associativas.

Com o apoio permanente AJUFERGS, se tornou possível a articulação e a participação dos associados, ensejando o estabelecimento de uma ponte entre as pessoas que precisavam de apoio e as pessoas que queriam ajudar (os associados, seus familiares e amigos).

Os associados, sem hesitar, atenderam ao chamado, cedendo seus recursos, tempo, habilidades, experiência e conhecimento, envidando esforços para que semanalmente as ações se realizassem. Participação essa que se traduziu em múltiplas formas e variadas frentes de atuação: ora se cotizando para os fundos, ora doando recursos e gêneros alimentícios, ora colaborando na organização das atividades, na compra de insumos, na preparação das refeições, se encarregando da embalagem e distribuição das refeições, preparando e embalando os itens para doações, arrecadando alimentos e agasalhos. Mais: construindo uma verdadeira rede de solidariedade, os associados arregimentaram parentes e amigos para também integrarem o time de voluntários.

De abril de 2020 a agosto de 2021, graças aos recursos oriundos de doações e à atuação dos associados, foram realizadas sessenta e nove ações sociais, tendo sido distribuídas 8115 refeições em quentinhas, mais cerca de 18.000 merendas salgadas e doces, preparados em quinze cozinhas parceiras, por associados, seus familiares e amigos, que se revezavam a cada ação. Também foram distribuídos, dentre outros itens, cobertores, roupas, máscaras, garrafas de água, sempre no intuito de amenizar as dificuldades das parcelas mais vulneráveis – população em situação de rua, instituições de acolhimento, casas de apoio, comunidades carentes.

Que memorável marco para os vinte anos da AJUFERGS. Se se pudesse formular um desejo para os próximos vinte anos (e quiçá mais além) da nossa associação, seria que perdurasse a atuação inspirada nos ideais da justiça e solidariedade e no espírito de fraternidade, tornando permanente a cultura da união de forças para o bem.

Seguem os depoimentos de alguns dos voluntários, que muito bem ilustram o que representa a participação na ação social.

Voz: Franciane da Silva Barbosa

DEPOIMENTOS VOLUNTÁRIOS
AÇÃO SOLIDÁRIA AJUFERGS

Voz: Jaqueline Mello Marques da Cruz

"É um privilégio participar de uma ação tão linda! Pedi pra participar da ação pra que minha filha adolescente pudesse conhecer outra realidade! Hoje, ela ainda me ajuda com os bolos! Mas a maior beneficiada sou eu quando vejo as fotos das pessoas recebendo o bolinho que fazemos com tanto carinho! Aquece nosso coração ❤ " 
Cris Boito, voluntária.

Voz: Roginaldo Vieira

"Participar da ação é um presente que o coração gigante e generoso da Carla e o apoio dos colegas me deram. A gente recebe muito mais do que dá. Gratidão!”
Graziela C. Bündchen, 1ª VFPOA, associada, voluntária. 
Voz: Alexandre Silva dos Santos
"Participar das ações solidárias da AJUFERGS propicia alegria e gratidão pelo contato e carinho recebido de tantas pessoas, em especial das crianças, nos mais diferentes bairros e vilas carentes de Porto Alegre. Mais que isso, ajuda a humanizar nossa função de julgador, pela melhor compreensão da realidade social e das necessidades humanas.” Rogerio Favreto.

Voz: Diogo de Oliveira Rangrab

"A ação social da AJUFERGS é uma oportunidade de aprendizado semanal de empatia, de transformação, de sair da zona de conforto, do valor da cooperação. Nesta ação fiquei muito consciente sobre como a gente pode fazer muito quando se junta com um propósito solidário, e de como pequenos gestos de doação, mesmo que por apenas um dia, podem fazer diferença na vida de alguém.  A intenção do projeto é doar, mas sempre recebemos de presente mais do que levamos. É um privilégio participar desse projeto, o sentimento de gratidão é enorme."
Carla Justino, associada, voluntária
Voz: Rosemeri da Silva Cardoso Borges

“Cuidar da vida. Olhar o outro. Não vivemos sozinhos. Impossível ignorar a condição do morador de rua, das crianças carentes, dos velhos abandonados, de todos aqueles que precisam de ajuda. Eles são muitos, estão entre nós, gente como nós. Praticar a solidariedade humaniza, concretiza o amor pelo outro. Sou imensamente grata à Carla e aos demais parceiros voluntários e colaboradores pela oportunidade de sonhar com um mundo com menos carência, menos sofrimento.”
Lilian Motta, voluntária.
Voz: Juliana Chaves Dias
"Participar de ações de solidariedade - como essa da AJUFERGS  - nos faz mais humanos!  Somos um time, e eu integro o time dos bolos. E posso afirmar que cada bolo feito contém muito mais que farinha, ovos, gordura e açúcar. Contém altas doses de solidariedade, compaixão, empatia, humildade. E contém muito amor ao próximo. Sou grata por participar desse grupo e poder colaborar trazendo um pouco de doçura na vida das pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Fazer o bem não importa a quem. Esse é o ponto." Glória Pedroso, voluntária.
Voz: Franciane da Silva Barbosa
"Quando se participa de uma Ação Solidária, a primeira questão que fica clara é: “Recebe-se muito mais do que se doa”. É muito gratificante! Como testemunhado por Carolina Maria de Jesus, em seu 'Quarto de Despejo. Diário de uma Favelada': 'A pior coisa do mundo é a fome' (2019, p. 191). Diria que não é natural que todos os dias pessoas continuem a passar fome. Ao contrário, é preciso todos os dias repetir: ‘Não é natural que pessoas passem fome, até que nenhuma mais passe fome!"
Clarides Rahmeier, associada, voluntária.
Voz: Rosemeri da Silva Cardoso Borges
"Participar dessa ação social desperta o que há de melhor em mim, traz a maior das satisfações que um ser humano poderia sentir: a de ajudar o próximo. Sinto que este projeto me permite transmitir o meu amor e a minha consideração para com o próximo por intermédio da comida que preparamos e entregamos às casas de acolhimento. Penso que devemos todo o amparo possível às crianças e adolescentes que semanalmente ajudamos, afinal, são o amparo e o auxílio que nos possibilitam o engrandecimento próprio e do terceiro ajudado. O projeto me permite, acima de tudo, alegrar, a cada quinta-feira, não apenas aos integrantes das casas de acolhimento, mas a mim mesma, tamanha a satisfação e o orgulho que tenho em poder dar o meu melhor sempre."
Laura Valduga, voluntária.

Referências bibliográficas:
[1] RICHIE, Carson I. A. Comida e civilização: de como a história foi influenciada pelos gostos humanos. Tradução e notas José Labaredas. Lisboa: Assirio & Alvim, 1995, p. 9.
[2] Por todos: BOTTURA, Massimo. Il pane è oro. Ingredienti ordinari per piatti straordinari. Milão: Phaidon/L’Ippocampo, 2017.  
[3] Sobre a distinção entre comida e alimento ver DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[4] DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[5]Livre tradução. No original: Les poètes aiment la bonne chère et célèbrent l’ambroisie. CARÊME, Marie-Antoine. L’art de la cuisine française au XIXe siècle: traité élémentaire et pratique. Tomo 2. Paris: Publicação do autor, 1833, p. iij.
[6] Esta e outras odes – ao tomate, à cebola, ao vinho, ao sal, estão em NERUDA, Pablo. Odas elementales.  Buenos Aires: Losada, 1977.

Os textos publicados não refletem necessariamente a opinião da AJUFERGS. O blog é um meio de convergência de ideias e está aberto para receber as mais diversas vertentes. As opiniões contidas neste blog são de exclusiva responsabilidade de seus autores.